Correntes
O último Verão"Natsu. Um nome que nunca fora relevante no grande esquema da história, mas ainda assim um nome de certa importância. Habitando um pequeno vilarejo, eram a principal força de defesa contra ameaças muito específicas ao País da Água. Não havia nada que os fizesse especiais, para além de sua interminável sede por batalha. Em seu papel enquanto defensores, controlavam de tal forma certas ameaças que muitas delas passavam completamente fora do radar de todo o mundo. Decerto as expetativas ditariam que, caso o clã e a pequena vila desaparecessem, as consequências poderiam ser desastrosas. A realidade, por sua vez, contou uma história bem diferente dessas expetativas. O clã desapareceu. Seus feitos, esquecidos. Na sua ausência tudo se manteve igual. E assim seu nome foi se apagando. Na memória deixaram apenas seus característicos olhos prateados, ainda hoje associados a um propício futuro enquanto guerreiro. No entanto, jà ninguém recorda a origem dessa crença."
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"E é por isso que não a podemos deixar partir. Compreende?"
Jun sentiu seu rosto se contorcer numa expressão desagradada assim que compreendeu as palavras que havia acabado de ouvir. Depois de ouvir toda aquela explicação, finalmente aceitou o papel e caneta que lhe haviam oferecido inicialmente, começando a rabiscar uma resposta. Os dois homens, sentados à sua frente na mesa, se entreolhavam nervosamente. A jovem Natsu deslizou o papel na direção deles, ainda com o mesmo desagrado pintando seu rosto.
'Compreendo que me salvaram de morte certa. Como compreendo que não tinham qualquer obrigação de o fazer, e acreditem que sinto gratidão por ambas essas coisas. Mas o que me estão propondo vai para lá de indecente. Posso dever minha vida a vocês, mas tal não quer dizer que é minha obrigação abdicar dela para me tornar numa arma sem opinião ou vontades, que um grupo de criminosos pode usar conforme bem lhes apetecer.'
Ao ler a última frase ambos os homens se entreolharam por breves segundos. Apesar de as palavras de Jun transparecerem a verdade, nenhum deles a conseguia ver. Aquilo que a Natsu, e o mundo, viam como crimes e infrações, eles viam como necessidade e a única escolha que tinham. Os reduzir assim a criminosos? Uma obscena demonstração de desrespeito.
'Não vou ficar convosco. Partirei de madrugada, e irei procurar refúgio numa vila próxima. Daí em diante esquecerei a vossa existência, assim como vossas ações. A minha vida pela vossa liberdade, é a única troca que estou disposta a fazer.'
"Natsu-san, julgo que ficou com a ideia errada. Não estamos lhe fazendo nenhuma oferta, nem lhe dando uma opção. Isso aí é..."
Um grito. Uma explosão. Logo mais gritos se seguiram, fazendo soar o pânico nas diversas tendas dos nômadas. Os dois homens se levantaram em simultâneo, de imediato assumindo que o grupo se encontrava sob ataque e necessitava da sua proteção. Ambos correram até a porta, um deles se apressando para o exterior e o outro se detendo ao ver que Jun, apesar de também se ter levantado, não havia se movido para longe da mesa. A expressão da moça era neutra mas intensa. Por um lado, seus instintos primais a compeliam a correr para o exterior, a se juntar ao combate lá fora, e saciar suas necessidades. Outro lado, um mais racional, a impedia de se mexer. Seria a oportunidade de forçar uma troca que lhe seria muito mais vantajosa a ela. A sua ajuda, para preservar a vida dos nômadas, decerto seria considerado paga mais que justa e suficiente pelo que eles haviam feito por ela.
"Sério que vai ficar aí parada em vez de-"
"Rápido." O homem que havia saído a correr voltara, de voz alarmada. "Já destruíram metade do acampamento, se não formos rápidos eles... Que se passa?" Se interrompeu ao ver os olhos azuis e sérios de seu irmão. Seguiu-os, olhando para Jun. Inspirou profundamente, sentindo que não tinha tempo a perder. Sabia o que se passava aqui, e sabia que seu irmão nunca concordaria com as palavras que estava prestes a proferir. Mas a prioridade eram as pessoas que estavam sob sua proteção. "Natsu-san... O nosso grupo salvou sua vida. Retribua o favor, hoje e agora. Nos ajude a salvar a vida dos nossos, e a deixaremos partir depois."
"Ficou louco?" Rematou de imediato o homem que ficara para trás. "Tem noção sequer do que está dizendo?"
"Shibui, não temos escolha." Contrariou imediatamente o homem, não despregando seus olhos de Jun. "Natsu-san, por favor..."
A expressão de Jun se amainou, respondendo ao homem com um simples aceno em concordância. Saltou para cima da mesa, se apoiando apenas em sua perna esquerda, e logo de imediato foi como se desaparecesse da sala. Atrás de si apenas ficara um rasto de pétalas vermelhas, e um par de irmãos bastante confusos.
"Eu devia era degolar você." Ameaçou Shibui, fumegando perante a insubordinação do irmão.
No exterior, Jun percebeu imediatamente a urgência. Para onde quer que olhasse, via apenas desconhecidos se mesclando com os integrantes mais indefesos do grupo nômada e os atacando sem piedade, espalhando destruição e caos. Várias das tendas provisórias já haviam pegado fogo, espalhando as chamas por tudo o que estivesse próximo antes de se transformarem em cinza. Jun desembainhou suas adagas, as agarrando firmemente nas mãos, cabos virados para o chão e lâminas encostadas a seu antebraço. Quase conseguia sentir as adagas gêmeas partilhando da mesma impaciência e expetativa que a moça sentia naquele momento, produto da tão familiar e caraterística adrenalina que lhe começava a correr no sangue, fazendo seu coração tamborilar de alegria e seus músculos arder com a expetativa da ação. Se lançou numa corrida rápida pelo acampamento, ajudando vários dos nômadas enquanto procurava por um grupo maior de invasores que lhe pudesse apresentar algum desafio. Enquanto corria incessantemente, seu corpo se afogava num frenesim que lhe permitia reagir praticamente sozinho e sem qualquer interferência consciente de Jun, atacando, defletindo, desviando, e retribuindo qualquer ataque que se cruzasse no caminho da moça. Nesses minutos as únicas manchas que se fizeram notar em suas adagas eram de lama e cinza, suas lâminas encontrando diversos oponentes mas nunca derramando sangue. Jun teria facilmente continuado assim indefinidamente, até ter conseguido percorrer todo e qualquer invasor que se encontrasse ainda no terreno. Mas algo fez seu coração gelar.
Uma voz feminina, familiar e transbordando urgência. A mesma voz que a acordara no dia em que sua vila natal havia sofrido o ataque. A mesma voz que a consolara, suportara, e aconchegara durante o tempo que seu corpo havia levado a recuperar.
"Não se atreva a tocar em minha filha!" Ameaçava a voz partida de Hiyowai, uma de várias curandeiras que pertenciam ao grupo nômada.
Numa observação rápida Jun pôde ver que a mulher estava em muito mau estado. Seus cabelos brancos, geralmente mantidos presos e bem ordenados, se encontravam soltos, despenteados, e tapando mais de metade de seu rosto. Suas roupas rasgadas, manchadas de vermelho. Algumas feridas em seus braços e pernas, e um largo fio de sangue escorrendo por seu rosto. A mulher não conseguia nem se mexer. E ainda assim, suas forças eram concentradas em tentar manter sua filha protegida. Jun levou dois dedos a sua boca, produzindo um sonoro assobio que fez as cabeças dos atacantes de Hiyowai se virarem na sua direção. 'Isso mesmo, se foquem em alguém do vosso tamanho', corria o pensamento na cabeça da Natsu, que ironicamente era bastante mais baixa que qualquer um dos invasores, e até mesmo que a curandeira. Sua distração não fora completamente eficaz, e a rapariga notou que três do pequeno grupo atacante se haviam deixado ficar onde estavam. Jun inspirou profundamente, apertando com força os cabos de suas adagas. Correu na direção do grupo que se dirigia a ela, que prontamente preparou seus armamentos para o ataque, investindo contra a moça ao mesmo tempo, e...
Suas armas se cruzaram num centro vazio, onde pairavam pétalas vermelhas.
Sua confusão foi quebrada por um berro masculino vindo de trás. Ao se virarem viram um de seus homens, com Jun descendendo sobre ele. Numa rápida sucessão de movimentos sua adaga esquerda se espetou no ombro do homem, ao mesmo tempo que a lâmina direita acidentalmente cortava o rosto dele ao acompanhar o movimento do braço de Jun. Esse mesmo braço se dirigiu novamente com grande velocidade contra o crânio do homem, fazendo o cabo da adaga embater violentamente na têmpora dele e o levando a dobrar seu corpo para a frente: ainda consciente, mas sem conseguir reagir devido aos ataques que acabara de sofrer. Um dos outros homens que ficara junto da curandeira partiu para a ofensiva quando percebeu o que estava acontecendo, brandindo uma espada curta na direção da morena. Ela, por sua vez, fez uma rasteira no homem que acabara de atingir na cabeça de forma a conseguir movimentar rapidamente o pesado corpo dele, o manobrando de forma a o usar como escudo. A espada do segundo atacante se cravou nas costas do companheiro, que não conseguiu produzir mais do que um gemido doloroso. Jun aproveitou a proximidade do segundo atacante para o atingir no nariz com o cabo da adaga, ouvindo um estalar sonoro quando o mesmo se partiu. Largou o seu "escudo humano", e os dois homens ficaram caídos no chão se contorcendo de dor.
O terceiro e último invasor finalmente se decidiu a enfrentar Jun, seu rosto preenchido com confiança. Afinal de contas, aquilo que tinha à sua frente era uma pirralhinha bem pequena e bem jovem, que agora não tinha o elemento da surpresa nem um escudo a servir de empecilho. Não ligou nem para a expressão determinada e imovível da jovem, não notando também que o resto do grupo que ali se encontrava inicialmente ainda olhava estupefato para o que estava acontecendo. Munido de uma longa machete, decidiu que atacaria a rapariga com a sua característica combinação de três golpes rápidos, que sempre executara com mestria e extrema velocidade, que sempre conseguia apanhar desprevenidos até os gatunos mais experientes em combate. Abriu com um largo golpe descendente, de que Jun se desviou facilmente. Instantaneamente seguiu com um golpe horizontal ao solo, que facilmente acertaria no ombro da morena. Em vez disso sentiu sua lâmina ser travada bruscamente, ficando retida na adaga direita da moça. Em simultâneo, uma dor profunda se fez sentir no cotovelo do braço que segurava a machete. Perdeu força na sua mão, e a lâmina caiu no chão. A adaga esquerda de Jun se encontrava profundamente cravada em seu cotovelo, impedindo toda a ação do braço dele.
"De onde raio-"
Antes que pudesse terminar sua frase Jun rodara a adaga direita na sua mão, para que a lâmina passasse a ficar no exterior. A ponta dela se encostou quase por instinto ao pescoço do invasor, o afiado fio da mesma perfurando ligeiramente a pele dele mesmo sem tentar. Ele engoliu em seco, fixando a rapariga. Os olhos dela, da cor de prata pura, refletiam as chamas de fogos próximos, e pareciam tão ou mais cortantes que as adagas que ela usava. Não conseguindo desviar o seu olhar do dela, o homem se sentia como se a morena estivesse cortando a própria alma dele. A mensagem não podia ser mais clara. 'Dê o fora.' O invasor olhou para o local onde o resto do seu pequeno grupo se havia encontrado até ali, mas imediatamente o fragmento de esperança a que se agarrara desapareceu. Não havia nem sinal deles.
"Moça eu não quero problema. Só queríamos comida e um pouco de diversão, apenas isso." Começou ele, agora de voz fraca e tremendo. Sentiu a adaga no seu cotovelo se contorcer ligeiramente, lhe arrancando um grunhido alto e doloroso. Não podia se atrever a mexer, ou a adaga em seu pescoço certamente o degolaria. Teria de medir suas palavras, se não quisesse que esse fosse seu destino. "Olhe... Eu peço desculpa. De verdade. Não voltarei a atacar vocês. Apenas... Me deixe ir."
'Se tivesse sabido que tinham alguém mais competente que o criminoso comum nem sequer teria vindo aqui', pensou ele. Um grito de dor se soltou involuntariamente de sua garganta quando Jun removeu a adaga esquerda do cotovelo dele, se afastando do homem com dois passos mas mantendo a adaga direita apontada a ele. Percebendo de imediato a mensagem, o homem acenou com a cabeça em jeito de agradecimento. Se dirigiu de imediato a seus dois colegas, ainda caídos no chão. Jun os observou enquanto se agarravam uns aos outros, se levantando e cambaleando até ao negrume da floresta próxima. Certa de que não seria atacada de surpresa por eles, sacudiu suas adagas para as livrar de qualquer excesso de detritos e as embainhou, de seguida correndo para junto de Hiyowai e se ajoelhando ao lado dela.
"Jun?" Chamou a mulher, quando se apercebeu de que era a Natsu que se aproximara dela. Jun tomou a mão da curandeira na sua e a apertou com força, como que a assegurando de que estava segura, de que tudo ficaria bem. Um sorriso triste agraciou os lábios da bela mulher. "Touki... Não deixe que lhe façam mal."
Jun acenou, não querendo fazer a mulher perder mais forças do que já havia desperdiçado até ali. Do pouco que percebia sabia que ela não se encontrava em qualquer perigo imediato, apenas extremamente fraca. Por isso mesmo não sentiu qualquer alarme quando a curandeira fechou os olhos, respirando tranquilamente.
"Natsu-san! Conseguimos mesmo. Estão fugindo que nem ratos!" Riu outra voz familiar que se aproximava, desta vez pertencendo ao homem que lhe fizera a proposta que a convencera a se juntar àquela defesa. Jun não conseguiu evitar um meio sorriso algo confuso. O homem parecia extasiado. "Nunca havíamos conseguido algo assim e com tão poucas perdas antes. É incrível, simplesmente incr-"
A voz do homem foi interrompida por uma larga estaca metálica que lhe atravessou o pescoço, vinda de suas costas. O corpo de Jun reagiu logo, se erguendo enquanto a morena dirigia suas mãos para os cabos de suas adagas. Se deteve quando uma pequena sombra, vinda de trás, correu até ela e se agarrou a suas pernas. Pelos cabelos brancos a identificou como sendo a pequena Touki, filha da mulher que se encontrava ali deitada no chão. Voltou sua atenção novamente para o homem na sua frente, vendo de expressão carregada os olhos esbugalhados dele enquanto a vida se esvaía de seu corpo. Assim que o corpo dele caiu no chão revelou que quem estava atrás dele era Shibui, o irmão, segurando a estaca ensanguentada.
"Incrível, de facto." Ecoou Shibui, atirando a estaca para o solo.
Vários cortes ligeiros agraciavam agora o rosto do homem, certamente produto da defesa contra os invasores. Suas barbas brancas se encontravam manchadas pelo sangue vermelho de seu irmão, e seus olhos azuis gélidos confrontaram os olhos cinzentos de Jun, que refletiam a luz como um par de lâminas afiadas. O olhar do homem se desviou para as pernas da jovem, pousando na pequena criança que se agachava atrás da Natsu, em seguida reparando no corpo de Hiyowai que ainda se encontrava estendida no chão. Quando voltou a fixar Jun seus olhos se encontravam calmos, resolutos.
"Gostaria de mudar minha proposta inicial. A sua vida... E a vida delas. Em troca da oferta de seus generosos serviços para o bem da tribo." Ofereceu ele.
Jun sentiu seus olhos se esbugalharem com o inesperado da situação. Sabia que isso era um ultimato. Sua cabeça instintivamente se voltou para a pequena Touki, ainda jovem demais para compreender o que se estava passando. Seus cabelos brancos eram iguais aos de sua mãe, que há vários meses atrás havia estendido a sua mão para Jun e a ajudado a recuperar. A mulher a quem verdadeiramente devia sua vida. Sua mão afagou o topo da cabeça de Touki, que continuava a chorar baixinho. Jun fechou seus olhos com força, seu sobrolho carregado, tentando aceitar a realidade da situação. Mesmo que se quisesse atrever a combater com ele ali mesmo, correria o risco de ver Touki e a mãe saírem magoadas da situação. Não podia permitir isso, não depois do que haviam feito por ela.
Ao lado de ambas, o homem continuava com uma expressão maioritariamente neutra, sem qualquer remorso ou hesitação. Acreditava realmente que estava fazendo o que tinha de ser feito, para preservar a segurança e bem estar da tribo. Tendo como única vontade proteger Touki e Hiyowai, Jun cedeu à chantagem. Seu plano era esperar que a curandeira melhorasse, e depois disso tentar fugir e clamar sua vida de volta. Estava certa de que, se conseguisse fugir sem provocar grande alarido e logo na primeira tentativa, Shibui não desperdiçaria uma das melhores curandeiras da tribo.
Hiyowai, ao contrário do que Jun esperara, não voltou a abrir seus olhos. Os ferimentos que sustivera durante o ataque não haviam chegado a receber os tratamentos adequados, clamando a vida da curandeira ao fim de algumas semanas. Sua filha, Touki, ficou sob os cuidados atentos de Jun. Durante os anos a sua relação se desenvolveu para uma que variava entre a de irmãs e a de mãe e filha. Touki se tornava assim a corrente que mais fortemente prendia Jun ao grupo nômada, sendo ela o motivo pelo qual a Natsu nunca realizaria qualquer tentativa de fuga.
Nos anos que se seguiram, e ao contrário do que esperara, Jun fora mantida praticamente em segredo. Apenas lhe era permitido combater como última defesa contra ataques aos nômadas, sob instruções muito específicas. Qualquer ação fora de ordens resultava em pesadas punições. Qualquer desobediência a ordens resultava em pesadas punições. E inibida de participar em qualquer combate ou confronto, desrespeitar ordens era tudo o que Jun podia fazer para matar sua frustração acumulada. Aos poucos, as punições desses desrespeitos foram acumulando mais cicatrizes sobre as várias que a rapariga já possuía.
Era esse o destino da última Natsu. Subjugada a uma patética tentativa de domamento, dividida entre sua determinação em proteger uma criança e o seu desejo de liberdade.