Kiyo estava deitada, com os braços por detrás da cabeça.
Olhava para o tecto, como se este fosse algo de interessante e complexo, com muito por observar.
No entanto, não era no tecto que concentrava os seus pensamentos.
A sua mente encontrava-se muito mais distante daquilo. Raciocinava. Tentava juntar as peças de um puzzle que desconhecia por completo. Quanto mais pensava naquilo, mais confuso lhe parecia.
Foi então que adormeceu. Deixou-se cair lentamente para o lado, repousando o seu corpo no chão.
Tinha agora sete anos.
-Porque é que paraste, pirralha? – gritou alguém, numa voz dura, com uma grave nota feminina. – Não foi para isto que eu te andei a treinar todos estes anos, pois não??!
-Não… - murmurou, olhando timidamente para os pés, inocente como qualquer outra criança da sua idade. – Desculpe, mãe…
-Cala-te e trabalha. Essa foice foi demasiado cara para ficar parada.
Natsuri Kiyo pegou suavemente na Kama, agarrando-a com ambas as mãos, sentindo-se uma inútil.
Cansada, levantou-a com algum esforço e recomeçou o que fazia anteriormente. Os cereais caíam à medida que martelava, cada vez mais exausta. O sol estava a pôr-se. O seu único incentivo era o jantar, que lhe era atirado todos os dias às nove horas.
Entardeceu rapidamente a seu parecer, depois de habituada àquela rotina.
Eram já nove e vinte e oito.
Colocou a sua preciosa foice debaixo do armário, constantemente receosa de que o pai lha roubasse.
No chão, tinha a refeição, restos de comida bolorentos. Kiyo não se importava. Era-lhe perfeitamente comestível devido à fome que passava diariamente. Para ela era-lhe indiferente que fosse metade de uma azeitona ou um bom prato cheio de bolos, desde que se pudesse meter à boca.
Antes que tivesse tempo de tocar no pequeno manjar que a aguardava, o seu pai entrou no quarto, escancarando a porta.
-A tua mãe disse-me que hoje não trabalhaste nada! És uma preguiçosa. Escumalha como os outros! – berrou, atirando-lhe a mão contra a cara, marcando-a profundamente no rosto, que brotava em sangue.
-Eu… eu prometo… eu juro-te que… amanhã,… eu esforço-me a sério…
-Essa cantiga já foi repetida mais que uma vez, menina! Já começa realmente a enjoar! – ameaçou, com os punhos no ar.
Subitamente, tudo à sua volta começou a girar, distorcendo-se vagarosamente.
Kiyo voltara agora aos seus nove anos.
-Ouve, Keyo, é hoje, não passa de hoje. Vou-me embora daqui, já não aguento mais!
-Calma. Podes ir, por mim tudo bem, mas, por favor, leva-me contigo. O meu desespero é tão forte quanto o teu. – disse, enquanto retirava uma madeixa negra de cabelo que o incomodava da frente dos olhos.
Era de manhã. O sol raiava, dispersando luz e calor pela vila inteira.
A rapariga estava de mão dada com Keyo. Caminhavam discretamente sobre o arrozal. As duas crianças levavam umas botas calçadas, chapinhando tudo o que se encontrava à sua volta com água. Kiyo levava a sua foice às costas, enquanto andava aos tropeções, tentando passar por cima de todo aquele arroz sem o esmagar com a sola dos pés. Estendia-se uma magnífica paisagem dali adiante.
-Uau! Isto é tudo tão bonito! Até me admira nunca ter reparado nestes campos antes. Se soubesse, vinha para cá todos os dias, aproveitava e tirava o curso de natação antes que a seca viesse.
-Engraçadinho… Sabes, metade do meu empenho foi aplicado nestas terras. A mãe obrigou-me a vir trabalhar para aqui há seis meses. Foi difícil e extenuante, mas penso que cumpri aquilo que me foi pedido.
-Ela pediu-te? Foi gentil contigo??! – perguntou, com certa admiração. – Julguei que ela te tratasse abaixo de cão… -disse, coçando a cabeça, desconcertado.
-Claro que não. A primeira coisa que fez foi esbofetear-me por ter trabalhado pouco naquela tarde. Ela nunca nos pediria algo por favor. Limita-se a obrigar-nos a fazê-lo, ou acabamos por ficar sujeitos a mais uma sessão de espancamento. Sendo assim, acabei por dedicar a minha vida ao cultivo e à colheita de cereais, pois naquela altura não avistava mais nenhuma saída. – fez uma breve pausa, enquanto abraçava o primo carinhosamente. – Mas, a partir de hoje, isso vai mudar. Oh se vai! – acrescentou, confiante de que tudo iria correr tal como planeara.
Agora a imagem que se formara na mente de Kiyo enquanto esta dormia desvanecia-se outra vez. Deixava de ser nítida, para se tornar numa mancha guardada na sua memória. Mas, inesperadamente, outros momentos significativos retornavam ao seu sonho.
As crianças estavam sentadas em cadeiras de plástico, distribuídas por um balcão infindável, cada uma seguida de outra.
Todas sorriam, tentando parecer o mais afectuosas possível.
Vários adultos circulavam diante dos seus olhos, deixando-as em expectativa permanente.
No entanto, apenas um as observava atento, tentando conservar o máximo de pudor, examinando cada uma, fazendo-as rir devido ao seu estranho aspecto e às caretas que, sem se aperceber, fazia junto às suas carinhas inócuas.
Chegara a vez de Kiyo.
-Como te chamas, querida? – perguntou o homem, ajoelhando-se, tentando estabelecer contacto com os seus olhos verdes, que lhe lembravam um pequeno riacho, esverdeado pela intensa luz que dele provinha, num mundo completamente diferente, onde habitavam as melhores coisas que alguém podia possuir.
-Natsuri Kiyo – respondeu. A sua voz soava fina e leve, quase melodiosa.
-Olá. Até agora, foste a menina que mais captou a minha atenção. Gostarias de vir comigo, viver para minha casa? Deixo-te levar mais alguém contigo, se quiseres, mas só e exclusivamente mais uma pessoa. E, por favor, escolhe apenas um amigo ou amiga com quem te dês bem.
Os olhos dela brilhavam ainda mais intensamente, se isso era sequer possível.
-Posso… levar o meu primo?
-Claro que sim – retorquiu, radiante. – E onde é que ele está?
-Ali ao fundo, o último – disse, apontando para o fim do balcão, muito longe da sua vista. – É o número 322.
-Obrigada, pimpolho! – brincou.
-O que é um…? Bah, esqueça…
-Já te venho cá buscar. – disse, piscando-lhe o olho.
“YAY!! É hoje! É hoje!!”, gritou Kiyo para si mesma, eufórica.
O homem percorreu o corredor, seguido da menina, até avistar a última criança. O pequeno rapaz tinha saído do seu assento para se sentar no chão desconfortável, enroscado de maneira a prender os joelhos contra o peito.
-Não vou sem ela! Não quero ir! – gritou, assustando o sujeito.
-Ela também vai. Foi ela que me pediu que a acompanhasses. Garanto-te que não te arrependerás. As condições são muito melhores. Terás no mínimo duas refeições saudáveis por dia. – tentou acalmá-lo, mostrando-lhe que a rapariga estava com ele.
-A sério? A Kiyo vai connosco? Vou ter todos os dias duas refeições? – perguntou, fascinado, levantando-se num ápice. – Posso ter um animal de estimação?
-Calma, rapazinho – sugeriu. – E porque não me dizes primeiro o teu nome?
-Keyo. Nara Keyo. E agora, podemos ir? É que eu estou cansado, e não vejo a minha prima há alguns meses, desde que nos separaram. Os machos para um lado e as fêmeas para o outro.
-Machos? Ai, rapazinho, vê-se mesmo que não vez uma rapariga há séculos. – riu-se. – Vá, vamos embora.
Deambularam pela passagem, felizes. Pela primeira vez em muitos anos, Kiyo pressentia que fazia parte de uma família normal. Fora o primeiro sentimento que experimentara quando nascera, embora não se lembrasse.
Eles tinham crescido. As pequeninas e indefesas crianças tinham aprendido a viver com alguém que as amasse de verdade.
Desenvolviam as suas capacidades. Treinavam todos os dias, esforçando-se por melhorar as suas técnicas. Com o tempo, tudo se adaptava a eles. Kiyo lidava cada vez melhor com a sua Kama, utilizando-a para defesa própria, não para colher cereais. O seu primo era muito mais ágil, passara os últimos tempos a trabalhar sem uma arma definida. Quando chegasse a hora certa, sabia que o seu pai adoptivo lhe arranjaria uma adequada.
Ambos receberam o seu animal de estimação. Kiyo tinha voltado temporariamente às suas origens, apesar de não querer ser vista pelos pais biológicos, conseguiu recuperar os seus objectos pertencentes e uma nova ninhada de três cachorros. Dois deles morreram durante a viagem. Estavam demasiado frágeis, não encontrara maneira de o evitar. A rapariga chorara dias seguidos. No final, resolveu ficar com o último cachorrinho. Resolveu cuidar dele e protegê-lo da morte, tal como acontecera aos seus irmãos.
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Finalmente, a minha preguiça deixou de ser tão intensa e tive coragem suficiente para escrever isto. Talvez daqui a dois meses consiga escrever o próximo
Obrigada por se terem dado ao trabalho de ler.
Abraços da Kiyo.