Filler 2 ~> O espelho

A sua expressão, impávida, não denotava nem um pouco da ansiedade que ela sentia a crescer no seu peito. Não sabia o porquê de tal sensação, visto que a única coisa que conseguira vislumbrar até agora resumia-se muito simplesmente a paredes brancas e céu negro, num ambiente estranhamente bem iluminado. Cada passo seu ecoava no enorme, vazio, imponente espaço à sua frente, retinindo na cobertura marmórea e polida do chão, causando-lhe arrepios.
Sentiu o seu corpo deter-se. Mais uma vez não fazia a mínima ideia da razão por trás disso, mas tinha a sensação de que deveria parar ali mesmo. Um ruído ridiculamente subtil obrigou-a a torcer o corpo para trás. Tal movimento quase que a derrubou, e só aí é que ela notou que não conseguia mover as pernas. Fantástico. Mas, estranhamente, não tentou lutar ou libertar-se. Sentiu que fazê-lo seria um erro. Em vez disso, fez o que pôde para restabelecer o equilíbrio, e só depois disso ergueu o rosto novamente.
Agora à sua frente, aparecido do nada, encontrava-se um espelho. Um vidro simples, imundo, cujas reflexões eram pouco claras. Um vidro sem moldura. Uma simples peça fina erguida ao alto, sem qualquer tipo de suporte. Por momentos, Kaede não conseguia ver mais do que algumas manchas confusas, sombras esbatidas na superfície do objecto. Mas alguns momentos bastaram para conseguir vê-la. Mas algo estava errado.
Na superfície embaciada, a devolver-lhe o olhar, encontrava-se uma rapariga idêntica a ela própria. A mesma altura, os mesmos olhos, a mesma expressão curiosa e confusa. Mas… Porque é que o cabelo dela estava tão comprido? E ainda por cima preto?
Intrigada, Kaede ergueu a mão e puxou um pouco do seu cabelo para perto dos olhos. A sua imagem fez o mesmo, acolhendo na sua mão uma fina madeixa negra. Kaede direccionou o olhar para o seu próprio cabelo. Continuava cor de areia, tão baço e curto como sempre. Voltou a colocar a mão passivamente ao lado do corpo, e a imagem do outro lado fez o mesmo. Seria aquilo realmente um espelho? Não, não podia ser. Se fosse um espelho, a sua imagem não teria o cabelo negro.
Ainda intrigada, Kaede inspeccionou a imagem à sua frente. Já não sabia se a sua preocupação se deveria inclinar para o grande número de semelhanças ou para as pequenas diferenças entre ela própria e a imagem à sua frente. Ainda incrédula, pousou a mão direita sobre a superfície morna do espelho, vendo a imagem do outro lado copiar os seus movimentos na perfeição. Do que ela não estava à espera, e talvez por isso mesmo se tenha afastado repentinamente após o ver, era que a “sua” imagem erguesse a mão esquerda, encostando-a ao espelho como fizera com a direita.
Kaede não se pôde afastar muito, visto que ainda não conseguia mover as suas pernas. À sua frente, aquela rapariga (a qual Kaede já havia assumido como não sendo a sua imagem) continuava com ambas as mãos encostadas à superfície que a prendia, um olhar suplicante a preencher-lhe o rosto. Apenas aí Kaede conseguiu olhar para o braço esquerdo da rapariga com atenção. Encontrava-se envolto em ligaduras soltas e largas, ensanguentadas e cobertas por aquilo que parecia ser fuligem. Por entre os breves espaços de pele que as ligaduras deixavam a descoberto, Kaede apenas conseguia vislumbrar uma cor negra.
Ainda a normalizar a respiração, Kaede ergueu os olhos para o rosto da rapariga. Um par de olhos, idênticos aos seus, gritava por ajuda.
Kaede tentou voltar a tocar no espelho, tentar fazer com que as suas mãos cobrissem as da pessoa por trás da superfície que se impunha entre elas como uma barreira. Mas antes que pudesse alcançà-la, tudo ficou negro. Os seus olhos abriram-se serenamente, fazendo-a acordar para o mundo real.