Treino Primeiro
~ Um embaraçoso começo ~
Acordara com um sentimento estranho, um misto de mal-estar com desconfiança. Havia alguma coisa de errado. Ainda nem abrira os olhos, mas sabia que a noite ainda reinava, profunda e misteriosa. Voltou-se na cama, na esperança de voltar a adormecer. No entanto, aquele sentimento não desaparecia. A sua intuição perturbava-a, arreliando-a e insistindo para que se levantasse. Acabou por o fazer e reparou nas horas. O relógio mostrava 5 horas e 21 minutos.
Foi à casa de banho e regressou ao quarto. Uma sombra estranha repousava no lado esquerdo da janela, algo que não era suposto. Não tinha lá vasos. Seria algum gato pardo? Ayame aproximou-se da janela, procurando a origem daquela sombra. Nada parecia causá-la. Acabou por a abrir, sendo instantaneamente envolvida no frio da madrugada. Arrepiou-se. Não tardou a encontrar cabelo longo, seguido de tecido arroxeado e pele perlada pela luz do luar. Estava um homem na sua janela, encostado ao telhado. Pediu a si mesma para se acalmar, mas estava um homem na sua janela por alguma razão que desconhecia. O seu instinto dizia-lhe para gritar, repugnada pelas muitas possibilidades que acabara de pensar. Forçou-se a preparar os punhos para se defender caso ele tentasse algo. Ele olhou para ela.
- Até que enfim que acordaste – disse ele. Levantou-se e ficou de pé no estreito parapeito da casa por curtos segundos. Desaparecera. Ayame voltou-se rapidamente e sentiu a sua presença dentro do seu quarto. Não conseguia discernir onde se encontrava exactamente devido à escuridão da madrugada.
- Quem julgas que és? Algum sugador de sangue cintilante e pedófilo? – questionou ela, colocando-se em posição de forma discreta.
- Ei, eu não sou um sugador de sangue cintilante.
Luz súbita encandeou-a, obrigando-a a entreabrir os olhos para se ir habituando à sua presença. Estava Hikaru à sua frente. Não sabia se havia de se rir pelo que ele havia dito ou se ele estaria a falar a sério. Recordou-se de repente que estava ainda de camisa de dormir e ele era um homem. Que vestes impróprias para se apresentar a um. As suas faces aqueceram e rapidamente reparou que estava corada desde a ponta dos dedos do pé à ponta dos cabelos. Procurou algo com que se tapar. Os cobertores estavam junto de Hikaru. O seu corpo sucumbira à vergonha e deixara-a imobilizada. Ele, no entanto, parecia indiferente à parcial nudez da rapariga e observava o quarto com uma expressão avaliadora. Ainda algo distraído, atirou-lhe um cobertor, no qual Ayame se enrolou tão rápido quanto possível.
O olhar de Hikaru encontrou o cauteloso verde dos de Ayame. Ela estava ainda assustada com ele e não tinha percebido a sua brincadeira. O susto brilhava ainda na imensidão do espelho da sua alma. Não devia ter aparecido sem avisar; ela obviamente não estava preparada para iniciar os treinos àquela hora da manhã, apesar de ser a hora que ele próprio mais apreciava. Também não se sentia nada confortável com a presença de uma jovem quase despida, apenas não queria demonstrar. Lutava contra o sentimento embaraçoso que tentava apoderar-se dele e estava a vencer a batalha. Era hora de acabar com aquele momento constrangedor.
- Estou lá fora à tua espera para começarmos o treino. Quero ver como estás para ter uma ideia do que posso fazer contigo – declarou ele, dirigindo-se para a janela, com um ar indiferente.
Ayame seguiu-o com o olhar para garantir que este saía. Não queria alguém a espreitar enquanto se vestia. Quando finalmente conseguiu acalmar-se, apercebeu-se de que era ainda madrugada e ele queria iniciar esforço físico àquela hora. Iniciou uma discussão mental consigo mesma, barafustando acerca do quão inapropriado fora enquanto se vestia. Não tinha ficado com a ideia de que ele seria tão exigente. Pensara que ele estava a brincar, mas, pelos vistos, não. Acabou de escovar o cabelo, colocou um elástico no pulso e aproximou-se da janela. Hikaru estava sentado no parapeito, no mesmo sítio de há minutos atrás, com a cabeça entre os joelhos dobrados. Cansaço? Pensava que ele estaria habituado a acordar cedo. Ia abordá-lo, até que se apercebeu que não sabia como o devia fazer. Formal ou informal? Mais valia ser formal do que passar por mal-educada.
- Nakayama-sensei?
Ele olhou para ela, surpreendido, desperto do seu momento de reflexão. Deu por si a rir com a formalidade da jovem, algo que o fez esquecer a sua preocupação.
- Podes tratar-me por tu e por Hikaru. No máximo dos máximos, sensei – respondeu-lhe, sorrindo. – E lamento por aquela situação, devia ter-te avisado antes. Vá, vamos andando.
- Não queres comer nada primeiro? – interpelou a rapariga.
- Não preciso de nada, obrigado. Mas tens a certeza que queres comer antes de fazeres exercício?
- Hum…
Hikaru sorriu e aquiesceu, recomendando para que fosse algo leve, que ficaria ali à sua espera.
Ayame surgiu pouco depois a mordiscar uma maçã. Olhou para a sua katana, que repousava na estante, e resolveu levá-la consigo. Se ele queria ver o que ela fazia, então iria mostrar-lhe. Saltou para a janela e fechou-a atrás de si. Reparara que eram quase 6 da manhã por entre as cortinas ainda a balançar pelo fechar da janela.
Desceram para o chão e a rapariga limitou-se a seguir o sensei para ele fosse. Provavelmente, iria para um dos campos de treino. O jounin acabou por parar quando chegaram ao sexto campo de treinos, o mais próximo da casa dos Midori, e virou-se para ela. Ela já acabara de comer.
- Bem… Vamos lá começar por um aquecimento. Duas horas de corrida à volta de Konoha? – sugeriu ele, com uma expressão de desafio.
Ela enfrentou-lhe o olhar, chocada. Duas horas de corrida era o aquecimento? Não queria imaginar o que se iria seguir e perguntou-se o que havia feito ao aceitar a ajuda dele. Tinha acabado de entrar no inferno e feito um pacto com o próprio diabo.
- Mas… - balbuciou Ayame.
- Três horas então.
Era melhor ficar calada. Se se queixasse, ele iria aumentar ainda mais o aquecimento e aí é que tinha dúvidas de conseguir aguentar. Não ia desistir já. Ia até ao seu limite sem se queixar. Não ia ser ele a fazê-la desistir. Pousou a katana no chão e anuiu, tentando não se mostrar derrotada sem dar luta. Respirou fundo e começou a correr.
Vinte minutos depois, chegou novamente ao campo de treinos. Hikaru estava descansadamente deitado em cima dos ramos de uma árvore, com a sua katana pousada junto das raízes desta. Amaldiçoou-o em silêncio pela tortura que aquilo seria. Sentia vontade de parar para respirar profundamente, mas sabia que seria pior para os seus músculos. Continuou a correr. Tentava evitar os locais onde possivelmente passariam pessoas para que não a vissem. Era demasiado embaraçoso passar tantas vezes pelo mesmo local, mesmo que pouco passasse das 6 horas da manhã e quase ninguém andasse nas ruas de Konoha.
Começou a sentir os músculos a dar pequenas picadas cerca de uma hora depois de ter começado a correr. Estava a abusar demasiado no ritmo. Não aguentaria as três horas com ele se já tinha começado a dar sinais de fadiga com um terço do tempo decorrido. Seria mais sensato diminuir o ritmo e empatar mais tempo para não ser obrigada a correr tamanha distância. Viu que esta estratégia estava a dar os seus frutos quando sentiu os músculos das pernas a relaxar e a estender correctamente.
Deu por si a desejar que já tivessem passado as três horas quando passou por Hikaru pela quarta vez. Este estava entretido a ler um livro e apenas lhe gritou o tempo que tinha passado. Apenas uma hora e 40 minutos? O seu corpo já não tinha muito mais energia. Uma maçã e um iogurte não lhe tinham dado energia suficiente para aguentar muito mais que aquilo. Acabou por perceber que estava a ser derrotista. Não ia parar. Ia até usar chakra se fosse preciso para suportar a dor ou para a amenizar.
Os seus joelhos estavam a fraquejar cada vez mais com mais frequência. Já mal se apercebia do quanto estava ofegante. Só queria parar. Os seus músculos pareciam distender demasiado com cada movimento. Faltavam 15 minutos para terminar a corrida, mas estava no seu limite. Aquele diabo disfarçado de humano havia de as pagar. Só esperava que ele ainda tivesse algo de humano dentro dele e a ajudasse se algo acontecesse.
Quando voltou a passar pelo campo de treinos, Hikaru arrumou o livro e olhou para ela. Devia estar mesmo próximo de terminar. O quanto desejava que ele lhe fizesse sinal para se aproximar… O seu coração quase parou de felicidade quando tal aconteceu. Caminhou um pouco para se acalmar e deixou-se cair no chão, de barriga para cima, a contemplar o céu. Todos os músculos do seu corpo latejavam. Até mesmo a sua cabeça estava saturada e com necessidade de descansar. Até os passos de Hikaru a aproximar-se dela pareciam os passos de um gigante ou de um vulcão em erupção.
- Então? Quentinha? – perguntou ele, com um sorriso provocador.
Ayame fulminou-o com o olhar. Ele estava a gozar com o esforço dela. Considerava-se uma pessoa calma, mas ele tirava-a do sério. Mas que raio se passava com ele? Ela era apenas uma gennin! Não estava habituada a um esforço tão contínuo. Nunca chegaria próximo da resistência dele se aquilo era o que ele fazia para aquecimento. Voltou-se para o lado para descansar um pouco. Não queria ver aquele desgraçado enquanto tentava juntar a pouca energia que lhe restava.
O jounin perguntou-se se não havia abusado. Queria mostrar que era duro, mas a rapariga estava a ganhar-lhe ódio por ter pedido algo tão puxado. Talvez fosse melhor assim.
- “Deixa-a odiar-me. Deixa-a querer vingar-se. Dá-lhe um motivo para ser melhor e se esforçar nos treinos.” – pensou. Não gostava da hipótese de não ser possível retornar a uma pessoa dita “normal” aos olhos da rapariga e ser o seu eterno e odiável sensei. Mas, se isso a ajudasse a ficar mais forte mais depressa, estava disposto ao sacrifício. O torneio das Kugeka não era brincadeira nenhuma. Bem se lembrava do ar derrotado e magoado de Kazuma 10 anos antes, do farrapo que ele ficara e nunca fora um ninja fraco, pelo contrário.
- Vá, Ayame. Não temos tempo a perder. Já fiquei com uma ideia da tua resistência. Agora quero saber que jutsus sabes.
Os olhos da rapariga encontraram os seus. Brilhavam de raiva. O verde límpido que tanto os caracterizavam estava escuro. Ela acabou por se levantar a custo. A sua pele estava vermelha, húmida e escorriam gotas de suor pela sua face, que esta acabou por limpar com a manga do seu casaco. Puxou as mangas para cima, para junto do seu cotovelo, na esperança de arrefecer mais rápido e assim conseguir recuperar mais depressa.
Ayame fez um único selo, murmurando “Tsubaki no Shin”. Aparentemente, nada havia acontecido. No entanto, ela sentia-se absorvida pela natureza, pelo seu chamamento, pela informação pura que esta lhe queria transmitir e que sabia que poucos naquele mundo entendiam. Hikaru olhava para ela; sabia bem o que ela tinha feito. Só não o conseguia ver. A não ser que ela…
- Concentra chakra na tua mão – ordenou. Ele demonstrou o gesto, apresentando uma pequena chama azul em volta da sua mão. Fora quase instantâneo.
A rapariga obedeceu, confiante nas suas capacidades. Sabia controlar bem o seu chakra e não foi uma tarefa difícil mostrar a sua cor actual ao seu sensei. O chakra tornara-se verde claro devido à activação da kekkei genkai. No entanto, reparara que demorara ligeiramente mais tempo que Hikaru. Precisava de melhorar ainda mais o controlo que tinha.
- Muito bem. Já tens controlo com a kekkei genkai. Agora será que sabes mais alguma coisa relacionada com ela? – desafiou ele, agradavelmente surpreendido. Queria ver até que ponto ela conseguia dominar o poder do seu clã. Tinha, pelo menos, mais um jutsu básico.
Ainda com o chakra na mão, gritou “Hana no Tsukuru” e a chama transformou-se num pequeno ramo de cerejeira em flor. Não necessitava de selos para um único ramo, apenas de um bom controlo de chakra. Desfez o ramo e absorveu novamente o chakra. Ia precisar dele para o que se seguia. Fez rapidamente alguns selos, surpreendendo-se a si mesma com a rapidez e fluência com que os fazia, e repetiu o mesmo jutsu. Rapidamente foi envolvida num tornado de pétalas de cerejeira. Começou a rezar internamente para que o jutsu seguinte funcionasse. Fez novamente selos e gritou “Sakura no Shigure”. As pétalas ganharam vida própria e dirigiram-se a Hikaru, envolvendo-o numa espiral. Ele sorriu.
- Kai! – bramiu. As pétalas desapareceram. Acrescentou num tom normal, com um sorriso rasgado: – Terás que fazer bem melhor que isso se quiseres que ele funcione em mim. Eu sei o teu pequeno segredo.
Então ele sabia que precisava de sentir o aroma. Mas não conseguiria fugir aos esporos se ela fosse cuidadosa. Ele não ia escapar se ela o quisesse mesmo atacar.
- Hana no Tsukuru! Sakura no Shigure! – insistiu ela. Desta vez, tinha criado também flores. Ele não ia conseguir fugir. Era impossível de escapar aos esporos, ainda que fosse possível fazê-lo ao aroma.
Hikaru conteve a respiração. No entanto, estava a sentir os efeitos do genjutsu. Estava tonto. A sua cabeça começava a latejar. Sabia que podia acabar com o genjutsu. Afinal, o seu genjutsu era bastante superior ao da gennin. No entanto, deixou-o seguir e envolver-se nas pétalas. Ela mesma teria que o terminar. Iria testar isso.
Assim que Ayame se sentiu satisfeita pela boa performance na realização do genjutsu, resolveu pará-lo para não consumir mais chakra. Estava a ficar esgotada. Não que as suas reservas de chakra estivessem a acabar, mas o facto de estar cansada e a usar jutsus era uma combinação terrível. Gritou “Kai” e as pétalas desfizeram-se. Viu Hikaru a cair com um joelho no chão. Devia estar com dores de cabeça. Ele esfregou as têmporas e colocou-se novamente de pé.
- Hum… Não tens mais jutsus de clã? – perguntou ele. O silêncio da rapariga mostrou-lhe que não. – E jutsus básicos? Espero que tenhas tido boas notas na academia. Não tenho tempo a perder para te ensinar as bases.
- Não me subestimes, por favor – pediu ela, algo ofendida e desiludida. Ele esperava mais da parte dela e ela sabia que não estava à altura da fasquia que ele lhe estava a impor. Ia mostrar-lhe o que sabia. Eventualmente ficaria melhor com o tempo.
Utilizou o “Bunshin no Jutsu”, seguido de um “Kawarimi no Jutsu”. Respirou fundo e preparou um “Shunshin no Jutsu”, que lhe permitiu chegar perto de uma árvore. Um segundo mais tarde, começou a subir a árvore com ajuda do “Kinobiri”, que envolvera os seus pés numa suave almofada de chakra verde claro. Saltou para o chão e sentiu necessidade de fazer uma pausa. Não se estava a sentir bem. Estava tonta e a ver mal, como se tudo estivesse envolto em nevoeiro. Ainda lhe faltava o Henge, mas não aguentava. Devia estar no seu limite e deixou-se levar pela escuridão.
Hikaru deveria ter previsto que estava a abusar bastante, principalmente quando a viu a entreabrir os olhos e a colocar a sua mão na cabeça. A rapariga estava longe de ter uma reserva de chakra infinita e exigiu-lhe demais para um primeiro treino. Pelo menos, ficara com uma ideia clara do seu estado actual. O seu instinto médico chamou-lhe a atenção novamente. Ela iria perder os sentidos em poucos momentos. Com um Shunshin, chegou perto dela antes que esta desfalecesse e caísse no chão desamparada. Ela merecia descanso. Mesmo que ela o achasse um cabrão insensível e ele mesmo soubesse que passara essa imagem propositadamente, tinha que admitir que tinha sido um treino bastante produtivo. Iria reduzir a intensidade num próximo treino. Não precisava de tanta exigência quanto pensava. Ela iria ser a melhor.
- Notas e desculpas da autora ao admin que avaliar tal monstruosidade:
Andava a tentar escrever isto há dias... E não o teria feito se não fosse o Datte a lembrar-me que podia ter jutsus novos.
Bem... Peço imensa desculpa pelo tamanho disto (entusiasmei-me) e por ter tão pouco conteúdo. Ando mesmo MUITO enferrujada para treinos (se é que alguma vez fiz treinos decentes). E peço desculpa se virem repetições constantes das mesmas palavras. Escrevi isto já com uma moca de sono em cima, portanto... Moving on, obrigada por lerem esta coisa! :3