Filler 2 - "Esta é a minha fuga..."

O som de vozes perturbou o meu descanso. As constantes palavras a unirem-se num incomodativo diálogo fizeram-me pestanejar. Arquejei e soltei para o ar insultos a ninguém em especial, espreguiçando-me e olhando para um teto cinzento. As vozes cessaram, para meu alívio, e tentei mexer os braços. Urraram imediatamente de dor e depressa parei a tentativa, soltando mais uma ou outra ofensa.
- Deixa-nos a sós, por favor. - Uma voz calma fez-se ouvir e reconheci-a como sendo uma das causadoras do meu acordar. Fiquei irritado e tentei logo levantar-me, mas as dores impediram-me - Têm calma, acho que a médica disse para não te esforçares em vão.
Uma vontade de insultá-lo passou pela minha boca, mas contive-me. Desviei o olhar para a figura à minha frente, sentada sobre um banco e a observar-me cautelosamente. Era um homem, bem jovem, de cabelos negros e longos. Os seus olhos azuis transmitiam serenidade e confiança, mas, ao me fitarem, também passavam um certo respeito misturado com superioridade. Tentei erguer-me de novo, com o homem a resmungar para não o fazer, e acabei por conseguir elevar o tronco e encosta-lo à cabeça da cama. Assim, pude ver também o seu manto branco, azul-escuro nas extremidades, que cobriam qualquer outra peça de roupa. Um chapéu branco e azul encontrava-se pendurado aos pés da cama e calculei que também era dele.
Além disso, também olhei para todo o cenário à minha volta. Estava num pequeno quarto, onde a cinza predominava no chão, paredes e teto. Encontrava-me deitado numa cama, que podia ser mais confortável, tapado por um simples cobertor branco. Ao meu lado estava um banco, onde se sentara o desconhecido, e uma mesinha de cabeceira sem nada por cima. Afastado da mesinha estava um armário castanho e bem alto, quase a tocar no teto, onde, provavelmente, se encontravam os meus pertences. Mais ao lado do armário encontrava-se a porta. À minha direita estava uma janela fechada, mas decidi não abri-la devido à impressionante camada de nevoeiro no exterior. Estava num quarto de um hospital… Mas, e a gruta?
Desta vez olhei para mim. Haviam-me coberto com uma única bata cinzenta, que se estendia até aos joelhos, deixando demasiado arejado para o meu gosto. Os pulsos estavam fortemente marcados por linhas vermelhas, dos grilhões, e em diversas zonas do meu corpo encontravam-se intensas manchas vermelhas, que me causavam dores em um único singelo movimento. Sentia um cabelo longo, por cortar, a baloiçar, acompanhado por uma dor de cabeça que não me permitia raciocinar bem.
- Onde estou? - Foi a primeira pergunta que me lembrei de formular, tentando não falar demasiado.
- Em Kirigakure. Uma equipa minha da ANBU encontrou-te numa gruta que descobríramos aqui perto. - Parou de falar quando me viu a olhar intensamente para névoa para lá da janela - Tenho provas suficientes para dizer que eras uma experiência dos donos do esconderijo…
Kirigakure… Kimera já me havia falado desta vila. Em conjunto com Suna, Iwa, Kumo e Konoha, Kiri fazia parte das cinco vilas principais. Sempre invadida por névoa, o que justificava a exterior, a vila tinha um mau passado e a sua fama não era boa de todo, mas possuía habilidades raras e interessantes.. Kimera gostava dela, a névoa era-lhe estranhamente agradável…
Kimera… Olhei cabisbaixo para os meus pulsos, outra vez.
Ela ainda não saíra da minha cabeça. Na gruta, enquanto lutava pela minha vida, pensara incessantemente nela e na minha vontade de voltar a vê-la…
- Dói-te alguma coisa? - Aquela voz voltou a pronunciar-se e olhei agressivamente em frente, encarando-o pela primeira vez. Este esboçou uma cara de espanto - Calma lá homem, fui eu que te salvei!
Suspirei e desviei o olhar novamente para a janela. Estranhamente, ele acompanhou o meu suspiro.
- Sou o líder desta vila, o Mizukage Okashii… - Após a apresentação, que não pedi, ficou a fitar-me.
- Katsu… Imagawa… - Respondi secamente, não tirando os olhos da névoa, só para evitar o máximo de contacto com ele.
Queria voltar logo para a minha casa... Ou Kusagakure, e vingar-me em Tadao para acabar com a maldição instalada sobre o clã… A minha família, que passei a governar há tão pouco tempo e que abandonei quando mais me necessitou. Afastei de imediato o cobertor e sentei-me sobre a cama, preparado para levantar-me. As dores não me iriam impedir de sair daquele sítio.
- Se queres sobreviver recomendo-te a não saíres daí, Tsutao. Ou Katsu, como tu quiseres. - Falou, fazendo-me pensar se mover por impulso era realmente assim tão lógico. Nem tinha reparado que ele me havia chamado de Tsutao… - Estás numa situação crítica, quanto menos te mexesses era melhor.
Olhei-o de soslaio.
- Então, Okashii-
- Okashii-sama ou Mizukage-sama. Aqui sou um líder, prefiro um pouco de respeito! - Esboçou uma expressão séria acompanhada por um tom autoritário - Não te esqueças que estás em Kirigakure, Uchiha.
Devolvi-lhe o olhar intimidador - O meu único líder e a única pessoa que merece a minha obediência já está morta - Olhei para ele… Nenhum sinal de fraqueza - Desculpa-me, mas tenho mais que fazer.
Levantei-me de rompante, decidido a não ouvir a resposta por parte dele. Não queria que considerasse um insulto e mandasse capturar-me por desrespeito ou algo assim do género, não entendia como funcionava o sistema das vilas. Surpreendentemente não fora o meu desrespeito que me causara dor, mas sim uma súbita irritação nas mãos e a tontura que me levara a colidir contra o armário violentamente.
- Eu disse para ficares quieto… - O seu tom sério desvaneceu-se para um mais amistoso e a sua cara retratava preocupação, apesar de não se mover do banco para meu auxílio - Se esperasses que eu te explicasse a situação…
Não conseguia ouvir-lhe a voz. O meu coração começou a bombear muito mais rapidamente e o cenário à minha volta já não conseguia ficar quieto. As tonturas vinham seguidas umas às outras, assolando e desgastando a minha cabeça. As mãos doíam-me, ainda mais do que na caverna, e a vontade de vomitar também era mais forte. Sentia o suor a escorrer-me pela cara até pender pelo queixo, e o líquido verde das minhas mãos a dizimar tudo em que tocava, soltando vapor que acompanhava ao que se exalava do meu corpo.
Okashii levantou-se e foi a correr até á porta. Deitei-me de peito contra o solo e estendi a mão para agarrar-lhe o tornozelo, tentando gesticular palavras, saindo só vocábulos incompletos, cortados pelos espasmos.
Dois médicos surgiram na porta e Okashii afastou-se para lhes darem passagem. A mulher afastou-me do armário, já quase inexistente, e colocou um dos dedos sobre uma das minhas veias no pescoço, tendo o cuidado de não tocar no líquido verde. Levantei a mão, para tentar agarrá-la, mas rapidamente afastou-se de mim, com expressão assustada, e trocou algumas palavras com o outro médico, as quais não consegui ouvir, levando a que ele saísse disparado. A mulher voltou a ajoelhar-se, agarrando-me pelo braço e dirigindo-me umas palavras.
Kimera invadiu-me o pensamento e o meu coração conseguiu arranjar potência para bater ainda mais intensamente. Uma enorme vontade de a ver fez-me agarrar com força à perna da cama mais próxima, mas esta rapidamente se desfez com o contacto, levando-me a embater contra o solo. A mulher, cada vez mais nervosa, falou com o líder de Kiri, que rapidamente fez uns selos e formou pequenas esferas de água ao seu redor. Eu estava cada vez mais fraco e as sucessivas tonturas impediram-me de ver as intenções de Okashii, mas sei que, nos últimos segundos de consciência, que as esferas me haviam rodeado o corpo (cara inclusive) e que tentou afogar-me…

“ - Preparem-se para a operação!”

Outra vez, este mundo escuro… Sabia o que era e retratei-o como a minha inconsciência, tão profunda e tão… vazia. Quem era eu? Tsutao Uchiha, não liguei para esse nome desde a primeira vez que o ouvi, mas… O líder da névoa não chamaria por outro nome se ele não me tivesse conhecido antes…. Antes desta confusão, de ter acordado naquela peculiar gruta com Kimera ao meu lado.
Lá vinha ela… A Fukeru conseguiu invadir-me de novos os pensamentos. Este mundo escuro, sem ela, seria desfeito. Foi por ela que lutei para sobreviver aquela loucura, por ela e pelo meu clã que entrei nas terras de Kusagakure, por ela que sujei as minhas mãos em tantos locais… Por que ela não fez o mesmo por mim, quando mais precisei…

“- Os batimentos cardíacos estão a diminuir, enfermeiro, depressa!”

Estas malditas vozes, sempre a perturbarem-me. Eu só quero ficar sozinho, pensar na vida inútil que estava a levar. Qual era o meu real propósito?
Até aquele momento comportei-me como um cão. Matei, diverti-me e apaixonei-me pelos Imagawa, mas não é num clã de assassinos que planeei passar o resto da minha vida…
Kimera, amava-a com tanta força. Era maluca, rebelde e muito irresponsável, mas nunca conheci pessoa tão destemida ou apaixonada como ela. Além de ser um regalo para os olhos de qualquer um. A minha primeira bebedeira com ela, primeira noite… Fez-me conhecer o lado positivo deste mundo e como tão bem o deve ser prezado…

“- Bisturi! Rápido, o coração não vai aguentar!”

Lembrei-me de uma das citações dela. Não recordei palavra-a-palavra, mas envolvia algo sobre os líderes das vilas: “Todos estes lutam pela felicidade do seu povo, todavia, nunca foi justificado a razão pelas vilas não se terem unificado, ao invés de ainda estarem separadas.”
Kimera contou-me que a qualidade, ou defeito, que melhor define o ser humano é a sua adaptabilidade. É nessa adaptabilidade que fundamenta a personalidade de cada um de nós e que determina se alguém se pode considerar “bom” ou “mau”, tal como é nela que conseguimos viver cada dia destes tempos complicados…

“- Calma, a pressão está a amainar. O corpo começou a aceitar as células…”

Os líderes das vilas não passam de controladores da nossa adaptabilidade. O defeito na qualidade são as influências, que facilmente penetram nas suas defesas. A grande prova eram os criminosos, renegados ou fugitivos. Referia-me a grandes mentes, pessoas que não quiseram adaptar-se aos sistemas das suas vilas e optaram por conduzir a sua por livre vontade. Nukennin`s…

“- Controlem o sangue, controlem o sangue!”

Essa é a razão pela qual Kimera não aceitou o seu pai como o líder da sua vila, entre outras. Essa é a minha razão e é com ela que vou afastar-me deste enjoativo mundo negro…

“- Esperem…”

É com ela que vou procurar pela pessoa que eu amo!

“- O que está acontecer, enfermeiro?”

E vou mudar a forma deste mundo, a forma detestável em que ele se está a virar!

“- Chamem Okashii-sama, depressa!”

Só depois me tornarei egoísta e procurarei saber quem é Tsutao Uchiha!

Ergui-me da cama e olhei à minha volta. Médicos rodearam-me e olharam-me com hesitação, espantados com algo em mim. Não lhes dei a mínima importância ou à sala, fartei-me de descrições! Afastei os estranhos fios que ligaram aos meus braços e empurrei qualquer objeto que representasse um obstáculo ao meu caminhar. Não me doía nada, não tanto como anteriormente, e, sem justa causa, sentia-me diferente, que o meu interior já não estava a morrer….
- Tsutao!
Aquela voz masculina, a qual me colocara tantas dúvidas! Olhei-o de relance e vi-o, Mizukage. Devia-lhe a vida, acima de tudo, e, independentemente dele ser um líder de uma vila (imediato inimigo da minha causa), vi-o como um amigo e salvador.
- Obrigado, Okashii-sama… - Pronunciei de leve, para que poucos ouvissem, certo que o pretendido destinatário o havia feito.
Nada disse, limitando-se a fitar-me. De alguma forma, soube que ele me devia algo, que essa era a justificação por me ter salvo e, provavelmente, curado. Mas isso já não interessou, nem era pesado o suficiente para me impedir de saltar janela fora, provocar o pânico geral e aterrar firmemente sobre o solo arenoso…
Esta é a minha fuga, a fuga da vida que prende os ninjas e os restringe a um mundo negro e ao qual poucos conseguem escapar. Esta é a minha fuga de Kirigakure, mas ao mesmo tempo é a corrida da minha vida!