Episódio I - Uma Chaga Negra em Carne Rosada
[Opening]https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=sx4hseUuu_4
~ ~ ~ ~
[OST] -> https://www.youtube.com/watch?v=-cIryoXp4gk
Engane-se aquele que tenta esquecer o passado. O passado não existe para ser esquecido, mas sim para ser carregado e suportado. A caixa guardada ao fundo daquele velho sótão, está apenas à espera de um pequeno pretexto, ou um descuido involuntário para se poder abrir novamente e causar novos sarilhos. O passado faz parte de um livro que ainda se escreve, e que eternamente se escreverá, através do sangue, das gerações, do amor mais profundo e de cicatrizes que insistem em incomodar um pouco mais. Cicatrizes essas que, sem o devido tratamento, se preparam para formar mais um buraco na carne de quem as carrega. É isso que é o passado, uma tremenda chaga negra na carne rosada de quem a carrega.
[OST] -> https://www.youtube.com/watch?v=lasWefVUCsI
Há já muito tempo que Deus decidira que, por alguma razão, a noite haveria de ser pintada em tons de negro. Naquela noite, havia uma sombra que acompanhava o vento gelado e melancólico de mais uma noite quieta no início do Outono. Corria ofegante por entre os aglomerados de árvores com altas silhuetas prateadas, iluminadas parcialmente apenas pela luz da Lua que, naquele momento, estava particularmente bonita. Havia silêncio na floresta, a não ser pelo fraco sussurro das folhas das árvores, que insistiam em dançar com o vento para não se sentirem sozinhas. O rapaz perdera a conta às horas que tinha corrido naquela imensa floresta, isso e as sandálias. Tinha os frenéticos pés nus, brancos como a neve e inevitavelmente repletos de cortes e com alguns preocupantes fios de sangue vivo que insistiam em jorrar, eram os pés de alguém que fugia, pés que calcavam os pequenos galhos das árvores e as poças de água deixadas pelo Outono para matar a sede aos pássaros que voam cansados contra o fim do dia. Era pouco o que agasalhava o corpo do jovem fugitivo, apenas um quimono negro (ou o que dele restava) e uma longa catana que trazia às costas, o quimono tinha sofrido alguns rasgões consideráveis ao longo da jornada e estava molhado e sujo de tantas chuvas que apanhara.
Começava a chover, mas o jovem de cabelos loiros, cujos a luz da Lua acabara de desvendar , estava com o coração demasiado aflito para parar, apenas corria.
Corria como quem se arrepende e espera ainda ir a tempo de remendar o passado, corria como alguém que teme o caminho e o destino, como alguém que ama e não sabe como proteger. As finas pingas de chuva continuavam a multiplicar-se e, numa questão de segundos, transformaram-se numa cascata. Havia uma a chuva começar a lavar o sangue já seco e encostado na lâmina que o rapaz carregava às costas.
“Espera por mim, eu estou a chegar” – Pensava o jovem rapaz determinado, cerrando os dentes, como se isso lhe fosse permitir o alcance de um poder divino sob os pés.
[OST] -> https://www.youtube.com/watch?v=ewHL3ZF_YIY&feature=relmfu
Algumas horas se passaram e as chuvas também.
A escuridão começara a ir ao encontro daquele branco luzeiro que nascia lá ao fundo. Filamentos de luz começavam a urdir a madrugada, lentamente, os primeiros rastos de um azul-glacial começavam a iluminar o céu, a Lua começava a apagar-se lá ao fundo, entre o azul. O Sol de Outono, esse ainda fraco, nascia lento no horizonte e o vento gelado da manhã começara a entrar pelas narinas do jovem que continuava a correr. O rapaz que tinha um quimono negro, uma espada nas costas e tinha os pés descalços. Era branco como a neve e tinha os olhos azuis como a água. Suores frios escorriam-lhe pelo corpo, colando as roupas ao tronco. Ele corria afligido, mas não foi isso que o impediu de apreciar o momento de proporção épica que é ver uma manhã romper-se por cima da nossa cabeça, diante dos nossos olhos. O silêncio matinal era diferente do silêncio noctívago, era puro, sem maldade, sem sangue. Naquele momento podemos ser o castanho das folhas que do primeiro dia de Outono pendem sob as árvores, podemos ser as pedras do chão, livres de toda a dor e aflição. Aquele era um momento para congelar.
A floresta começava a chegar ao fim e uma vila erguia-se para lá do horizonte, como um velho retracto de infância.
O rapaz correra durante meio dia e uma noite inteira, e as consequências de tudo isso começaram a surgir, o corpo começou a ceder à pressão do cansaço físico e emocional e começara já a sentir uma pesada febre a chegar, tentava resistir mais um pouco, mas andava a custo e começava a cambalear.
[OST] -> https://www.youtube.com/watch?v=RDLqxnOOIc8
A febre atingiu um pico desumano e,após cambalear mais uns metros, a única coisa que conseguira ver antes de um profundo desmaio, foi a velha mão de um senhor de cabelos grisalhos e uma longa capa branca, que afagava a inocência e o medo de uma criança assustada, com os olhos arregalados e as mãos voltadas para o futuro.
Ambos sorriam, um com a perspectiva de um sonho futuro, e o outro… também.