Conhecendo-se assim próprio

- Tsutao… Tsutao!
O adolescente abriu os olhos, percebendo que respirava ofegantemente e que tinha a cara cheia de suor. Ergueu o tronco e olhou à sua volta, limpando o suor com as costas da sua mão enquanto tentava, em vão, cessar a acelerada respiração e palpitar do coração. Sentindo-se estranhamente claustrofóbico por não conseguir ver nada à sua volta, levantou-se (sem saber onde sequer estava deitado) e deu um passo em frente, chutando alguma coisa metálica, que não se moveu. Deu um guincho agudo quando sentiu a dor no seu pé, inexplicavelmente descalço, a bater naquela superfície estranha, recuando instintivamente para trás para embater, agora com as mãos e costas, noutra superfície metálica. Virou-se, cada vez mais assustado, e começou a tatear o que parecia ser uma parede, seguindo-lhe o rasto até desenhar um quadrado ao longo do pequeno quarto sem iluminação em que estava alojado. Não se sentindo mais confortável com a situação, atirou-se contra o chão, a sua respiração a ficar gradualmente pior, e mergulhou a sua cabeça entre os joelhos.
- O-onde é que eu estou? – Perguntou-se com a voz tremida, agarrando nos seus cabelos e espantando-se com o tamanho dos mesmos. Estavam tão longos! – O… O que se está a passar?
Num solavanque, o personagem pareceu acordar para a realidade, voltando a levantar-se e perdendo qualquer medo que até então tinha. Começou a bater violentamente na superfície metálica com as palmas das suas mãos.
- Deixem-me sair! – Gritou com uma voz muito mais grossa do que a anterior, batendo nas paredes com cada vez mais força – Deixem-me sair, porra! – Vendo que não daria em nada, afastou-se com alguns passos, voltando a analisar o espaço ao seu redor como se não o tivesse feito anteriormente – Tenho de ir ter com o Takeshi, deixei o franganote sozinho lá fora! Merda…
- Q-quem és tu? – Aquela voz esganiçada voltou ao cubículo, sobressaltando Katsu, que conseguiu fingir indiferença – O-onde é que nós estamos?
O Imagawa olhou para o novo sujeito. Era muito semelhante a si, se não fosse anos mais novo, o seu cabelo não fosse curto (apesar de ainda pender para a frente) e não fosse mais franzino e pequeno. Na realidade, aquele rapaz lembrava-lhe o Takeshi e muitos dos guardas da organização. Todos eles com aqueles olhos estranhos… No entanto, aquela figura estava amedrontada, encostada a um canto do quarto com a cabeça entre as pernas, não conseguindo parar de tremer como um animal enjaulado.
- Katsu Imagawa… - Respondeu o Akatsuki com a sua habitual boa-disposição, tentando não ser afetado com o ambiente opressivo daquela sala de paredes metálicas e com o choro daquele adolescente ridículo – Eu… Não sei onde é que estamos… Só me lembro que estava a atacar a Shin no San e agora… Bem, agora estou aqui… - A voz saiu-lhe frustrada por querer explicar a situação quando nem mesmo ele a conseguia entender.
O rapaz fungou profundamente, olhando para as costas do desconhecido com quem falava com algum espanto.
- A Shin no San… És um Uchiha?
O Imagawa ponderou sobre a pergunta, demasiado complexa considerando a sua situação. Para outra pessoa era um simples “Sim” ou “Não”, mas para ele era muito mais profundo. Ele é um Imagawa, orgulha-se nisso, todavia não podia recusar que possuía sangue Uchiha…
- Acho que… Sim, porquê a pergunta? – Respondeu com um tom mais confuso do que desejava, parando de tentar resistir à prisão à sua volta e sentando-se também ele no frio chão metálico. Sentia-se estranhamente empático com aquela figura…
A resposta pareceu causar uma certa desconfiança no outro sujeito, que começou a fitar o Akatsuki com mais intensidade, como se analisasse cada pormenor nele à procura de algo que fosse desonesto.
- És o Katsu Imagawa… És um Uchiha… A invadir a Shin no San? – Resumiu o seu próprio questionário com uma voz extremamente desconfiada e pausada – Isso parece-me tudo um monte de mentiras!
O criminoso suspirou, encostando a cabeça contra a parede e pensando em tudo o que tinha acontecido até agora. Por que estava a dar justificações àquela criança? Será que não tinha nada melhor para fazer?
Quando se preparou para continuar a conversa com o seu colega de quarto, uma porta abre-se, preenchendo a escuridão com uma intensa luz que cegou Katsu, obrigando-o a cobrir os olhos com o braço. Um vulto apareceu à entrada, sendo impossível de distingui-lo devido a tanta maldita luz, encaminhando-se na sua direção.
- Tsutao Uchiha, levanta-te! – Ordenou o vulto com uma voz grossa, agarrando o Imagawa pelo braço e obrigando-o a cumprir a ordem – Prepara-te para o treino!
O Akatsuki estranhou toda a situação, não lhe agradando também as ordens que recebia de um completo desconhecido, afastando o seu braço com um puxão, fazendo-o cambalear pela repentina força.
- Está é calado! – Não suportava ordens de outras pessoas com quem não tivesse o mínimo de confiança – Em vez de estares aí a achares que és homem porque não começas a explicar esta merda toda?! Onde estou?!
O vulto não respondeu imediatamente, afastando o braço da sua cintura e deixando-o hirto.
- Tsutao Uchiha, não costumas resistir quando é para treinar… Que se passa hoje? – Apesar de tentar manter uma voz calma e paciente, falhava em todos os aspetos de fazer isso, apresentando-se nervoso com a resistência do seu “paciente” e mantendo uma voz algo irritada.
O olhar de Katsu arqueou. “Tsutao Uchiha”?
- Como é que sabes que me chamo Tsutao?
O vulto não respondeu de imediato, instalando-se um constrangedor silêncio na divisão. Após alguns segundos, que o Imagawa pensou serem apenas para ponderar na resposta, o braço do vulto adquiriu subitamente uma intensa chama com a imagem de uma espada. O criminoso, sobressaltado, deu um passo para trás para evitar o corte horizontal que tentou cortar-lhe a jugular, surpreendendo-se com o súbito ataque.
- O experimento Tsutao Uchiha está com problemas mentais? – Perguntou o seu adversário com um tom jocoso, tentando outro ataque que foi facilmente esquivado – Deixa-me que eu lhe relembre a memória!
Com aquelas palavras, Katsu pareceu lembrar-se de algo de repente, sentindo intensas queimaduras ao longo do seu corpo, como se aquela espada de chamas já o tivesse atingindo várias vezes no passado e ele apenas sentisse a dor agora. O mais estranho é que fora realmente o que acontecera, pois o Imagawa ia lentamente recuperando algumas imagens daquela mesma lâmina o cortar, acompanhada por alguns gritos de prazer muito semelhantes à voz daquele vulto.
Num arregalar de olhos, ele percebeu tudo, lembrando-se da longa semana que passara naquele cubículo metálico, os treinos intensos e dolorosos que passara, os consequentes castigos recebidos por aquele estranho vulto que tantas vezes estivera perto de matá-lo! Quando a espada de fogo voltou a surgir, Katsu limitou-se a segurá-la com a sua mão coberta por água, enfraquecendo a lâmina adversária até esta desaparecer totalmente numa nuvem de vapor. O vulto recuou, surpreendido pela súbita resistência que não vira até agora, antes da água que desfizera a sua espada o trespassasse no pescoço, jorrando sangue por cima do cinzento monótono do quarto.
- E matei mais um Uchiha… - Murmurou, não se arrependendo da sua decisão de matar aquele maldito que tanto o fez sofrer, deixando que a água sangrenta se juntasse ao seu corpo.
Com a porta aberta e o seu obstáculo morto, encostado à parede e sentado sobre a sua própria poça de sangue, Katsu deu uma última olhada pelo quarto, não vendo mais o adolescente que ainda há pouco estivera a falar consigo. Pensando que ele se aproveitara para escapar enquanto estavam todos distraídos, o Imagawa decidiu esquecer o assunto e seguiu com a sua vida. Mal saiu da sala, assustou-se ao ver o adolescente encostando à parede com os braços cruzados, mantendo os olhos fechados. Estava agora muito mais calmo do que há pouco, parando de choramingar e de respirar ofegantemente.
- A tua memória parece que ainda anda com problemas, não, Katsu? – Perguntou com uma voz muito mais confiante, afastando-se da parede e descruzando os braços, mantendo um forte contacto ocular – É complicado eu ter-te de explicar a nossa situação mais do que uma vez. Não sou uma pessoa muito paciente…
- Nem acredito que eu era tão arrogante quando não passava de um puto… - Respondeu o Imagawa secamente, ignorando o adolescente enquanto passou por ele, seguindo pelo silencioso corredor, também ele todo metálico como o seu quarto. O adolescente acompanhou-o com uma cara relutante, como se não tivesse outra escolha – Desta vez não precisas de explicar, já me lembrei de tudo… Tsutao Uchiha…
O adolescente permitiu-se a soltar um leve sorriso de satisfação enquanto caminhavam, voltando a cruzar ambos os braços.
- Eu nem acredito que quando eu virasse adulto deixaria crescer tanto o cabelo… E a barba!
- Não te preocupes, eu faço a baba frequentemente, também não gosto dela grande… - Suspirou Katsu, virando à esquerda quando encontrou uma bifurcação, estranhando como já conhecia todo aquele complexo – Pelo menos agora sei para onde tenho que ir, só te agradeço por isso…
- Quer dizer que não gostaste da nossa semana juntos? – Perguntou o Uchiha, soltando uma leve risada arrogante – Admito que fiquei estúpido. Passei tanto tempo adormecido e quando acordo vejo-me com roupas de hippies e com um cabelo tão longo como uma esfregona… Pensas que não me assustei? – Katsu apertou os seus punhos firmemente, controlando-se em ataca-lo para não causar problemas, mesmo que isso não fosse possível pois estava plenamente consciente que ele estava apenas a falar consigo mesmo… - Agora tenho de dividir o corpo que demorei dezassete anos a criar com um não sei quem que aparece de nenhures e mo estraga completamente!
- Quer dizer que eu tenho vinte e um anos? – Questionou o Imagawa para ninguém em especial, apesar de ser inevitável que o outro franganote também ouvisse, não conseguindo evitar um sorriso de satisfação por finalmente saber a sua idade.
- O quê?! Eu tive quatro anos inconsciente?! – Perguntou Tsutao com um semblante verdadeiramente surpreso, abrindo bem a boca com o espanto – Eu tenho de voltar a tomar conta do meu corpo! Tenho de encontrar o meu irmão, a Dan Dan e a Oichi! Oh meu deus, o que terá acontecido nestes quatro anos? Eu pensei que fossem só umas horas ou uns dias…
O Akatsuki voltou a virar outra esquina, começando a estranhar que não estava ninguém a vigiar os corredores das divisões laterais do cubo superior do complexo que invadira. Sabia onde estava e como escapar graças às memórias de Tsutao que recuperara recentemente, a pessoa que estudara a Shin no San tão profundamente que não havia nada que não soubesse sobre a organização. Toda aquela informação fora bem recebida, mas tudo o resto ainda agora era complicado de ingerir. As memórias do Uchiha traziam muito mais consigo do que apenas Shin no San, traziam uma nova vida, razoavelmente longa e cheia de memórias com as quais o Imagawa ainda não sabia lidar. Era a SUA vida e ele sentia que a queria recuperar, mas ao mesmo tempo também queria ser o Katsu… Desde que começou a dividir-se de forma tão complexa sobre as suas duas facetas é que surgiu uma espécie de espetro do Tsutao Uchiha, agindo e falando normalmente, apesar de apenas para ele ser visível…
- E nem acredito que perdi a minha virgindade com aquela loira oxigenada! – Criticou-se o Uchiha, referindo-se a uma das melhores memórias de Katsu com a sua amada Kimera, levando-o a apertar ainda mais os punhos – Que me juntei a um clã de hippies, que ganhei um problema de alcoolismo e que me juntei à Akatsuki… À AKATSUKI! Onde é que eu tinha a cabeça?!
O Imagawa apenas respirava calmamente, tentando não pensar em nada e apenas ignorando a sua versão mais nova, tão irritante e arrogante. Virou outra esquina e observou que, ao fundo do corredor, estava por fim a porta que o retornaria para o cubo central da organização, no qual tanto lutara e tão facilmente fora capturado.
- Que estás a pensar fazer, Akatsuki?! – Perguntou Tsutao, pronunciando a última palavra com uma propositada arrogância para irritar o seu alter-ego – Ainda há uma semana quase te matas só para entrares aqui! Tu não querias saber quem eu era? Agora que já sabes, deixa o Hideyoshi em paz e vamos à procura do meu irmão! Já não quero saber da merda desta organização, apenas quero voltar para a minha família…
Katsu não se conteve mais, rosnando de raiva e agarrando Tsutao pelos ombros, empurrando-o contra a parede e aproximando a sua cara da dele, certificando-se que ambos os olhos castanhos se olhavam.
- Nós sabemos tudo sobre o outro, nem me tentes mentir, pirralho! – Continuou a rosnar, contendo-se para não começar a socar a si próprio - Eu vou descobrir a verdade sobre o meu pai, nem que precise de matar aquele Hideyoshi de uma vez! E só depois é que eu vejo o que fazer!
O corpo de Tsutao desvaneceu-se após tão iradas palavras, voltando a deixar Katsu sozinho como sempre esteve. Suspirando de alívio por finalmente se livrar da sua dor de cabeça, continuou a caminhar para a porta…