Chovia do lado de fora da mansão. Os fortes respingos na vidraça criavam uma melodia reconfortante para a mulher que lia sentada numa confortável poltrona vermelha. De frente à lareira para diminuir o frio, Gaina parecia distraída com seus pensamentos quando algo chamou sua atenção como se a trouxesse de volta de um transe. Levantando-se com delicadeza, a que se auto-proclamava "deusa" franzia o cenho ao empurrar a poltrona para o lado por alguns centímetros, quando fechou o livro e aguardou por alguns breves segundos. Nesse instante, como se adivinhasse o que estaria por vir, Gaina viu aquela massa horrenda de metal coberto por sangue e areia que caiu ruidosamente em cima de seu carpete de pelica. Por trás daquele monstro irreconhecível, uma figura já conhecida, um homem que vinha lhe servindo como espião há algum tempo.
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O que o traz aqui Kazuki. - Perguntou carismática.
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Gaina-Sama! Por favor! Ajude-me a salvar meu amigo. - Suplicou o homem, trazendo um cilindro pulsante que esguichava sangue por uma corte profundo na lateral. A mulher mal conseguiu esconder sua satisfação e curiosidade ao ver aquilo. Ela já tinha conhecimento do núcleo das marionetes-humanas, mas nunca vira uma tão de perto. -
Dê-me. - Inquiriu ao subalterno. Com as mãos trêmulas, Kazuki estendeu o cilindro repugnante e se ajoelhou numa posição de respeito. Sorrindo novamente, a mulher verificou o objeto sem se importar com toda sujeita e quando terminou sua breve inspeção, concentrou-se por um momento. Ainda de olhos fechados, Gaina tocou na parte orgânica com a mão esquerda que brilhou num singelo azul.
Como milagre, Kazuki viu as milhares de vasos capilares eclodindo do cilindro, formando um desenho incipiente de um homem, como numa figura de um livro de anatomia. O coração, que antes ferido gravemente pela lâmina, agora se desprendia da prisão de carne e pulsava sangue para o sistema circulatório fantasmagórico. Só então o espião começou a observar o nascimento de ossos e músculos, orgãos e sistema nervoso retornando aos seus lugares numa forma humanóide perfeita. Todo o corpo parecia regenerar-se de maneira precisa e incomum. Incrível. Era como nascer de novo. Daisuke parecia ter nascido de novo. Nenhuma cicatriz ou marca de nascença. -
Pronto. - Ela disse, apoiando-se nas mãos sujas para levantar-se. Afastando-se dos dois, ela buscou novamente seu chá dizendo:
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Ele está pronto. Leve-o daqui - Disse ao homem.
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Minha senhora... Obrigado. - Respondeu fazendo reverência.
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Não me agradeça. Avise-o, quando acordar, que ele agora me pertence. - Sorriu.
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Si.. Sim senhora. - Acenou, agarrando seu amigo para voltar a sumir.
No mesmo instante, os nukenins ressurgiram no esconderijo. Dentro da penumbra formada por inúmeras tochas presas às grossas colunas de pedra, Kazuki adentrou no laboratório da ex-marionete. Esquemas, tintas, madeira, tudo foi ao chão num empurrão para dar espaço para o corpo recém-recuperado. Os sinais vitais pareciam fortes e contínuos.
Melhor deixá-lo dormir. - Pensou Kazuki, sentando-se numa cadeira com um olhar que refletia sua perplexidade diante aquele salvamento. As histórias que diziam sobre a tal "deusa' não lhe faziam justiça. Uma mulher capaz de evitar a morte por causa de um ferimento tão grave e ainda reconstruir um corpo inteiro era algo inimaginável para qualquer um. Nesse momento Daisuke gemeu e balbuciou o nome da falecida Yuka. Debatendo-se como se não tivesse costume de suas dimensões, o loiro finalmente abriu os olhos.
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Onde estou? - Falou, com uma voz rouca.
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De volta ao esconderijo. - Respondeu Kazuki, sorrindo com satisfação.
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Eu deveria estar morto. Como? - Retrucou o rapaz, olhando admirado para as mãos reconstruídas.
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Literalmente... Tive que fazer um pacto com o demônio. - Concluiu, colocando a mão no ombro dele.
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Sou humano novamente? Como? - Perguntou surpreso, ao olhar-se no espelho pela primeira vez em muito tempo.
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Tudo será explicado com o tempo. Descansa. - Terminou, começando a empurrá-lo de volta à cama improvisada.
Aquilo só poderia ser um sonho. Após tanta luta para escapar da fraqueza da carne, parecia que na verdade ele ansiava a voltar a sentir o frio, calor, o toque, o beijo. Aquilo que sentira no último abraço em sua amada nada mais era do que instruções em código indicando que algo o tocara. Tudo artificial.
Yuka... Sentia saudade. Daisuke não tinha a mínima ideia de quanto tempo se passou desde a tragédia, mas talvez, só talvez, essa reconstrução seja um sinal de Sun Wong em lhe dar uma segunda chance. Talvez, se ainda fosse humano, ele poderia ter beijado a mulher que amava. A posição do seu corpo mudaria em relação ao ataque de Lian. Talvez ela ainda estivesse viva. Uma lágrima desceu em sua bochecha em direção à boca. Uma sensação que pensava que nunca mais sentiria. Só então seu corpo cedeu à força de Kazuki e finalmente Daisuke se deitou para descansar.
CONTINUA...
- Spoiler:
Curtinho para manter o suspense...