-Kita-sensei, não me pode explicar melhor para que é que isto serve?
Kita desviou os olhos do palito que já mastigava há dois dias, vendo o olhar confuso de Kaede concentrado no pedaço de papel amarelado que ele lhe passara para a mão.
-Já te disse. Concentra o teu chakra nessa folha e tenta cortá-la.
-Mas qual é a utilidade disto? Quer dizer… Eu já sei qual é o meu elemento!
-Não é por isso que quero que rasgues a folha. – Kita suspirou, voltando a meter o palito na boca. Sentiu alguns segmentos da madeira fina do mesmo entrelaçarem-se na sua língua, mas ignorou-os. Sem qualquer pedido de permissão, retirou a folha das mãos de Kaede e vincou-a a meio. Desdobrou-a novamente e voltou a entregá-la à rapariga. – Quero que a rasgues pelo vinco, o mais perfeito possível.
-Para…?
Kita não conseguiu evitar um segundo suspiro, acompanhado por um entediado revirar de olhos. Já há muito que não dava à sua estudante um exercício que ela desconhecesse por completo, e isso fizera com que ele se esquecesse do quão complicada ela podia ser. Nunca entendera porque é que ela não podia simplesmente limitar-se a ficar calada e a fazer o que lhe pediam. Qual era a vantagem de saber tintim por tintim aquilo que era instruída a fazer?
-Limita-te simplesmente a concentrar o teu chakra na folha e a cortá-la pela dobra. Obviamente terás de usar o teu elemento para o fazer.
-Mas porquê isto agora?
-É treino, Kaede, treino. Agora corta a folha e cala-te.
Kaede finalmente sujeitou-se ao silêncio, lançando um olhar intrigado à folha, quase como se esta a tivesse insultado. Kita ainda lutava com o cobertor que utilizara para dormir na noite anterior, tentando enfiá-lo à pressão na mochila. Este, apesar de tudo, teimava em não entrar.
-Pensei que o treino fosse algo mais… produtivo.
-Não te atrevas a dizer que o que vais fazer não é produtivo. – Kita, irritado, começou a esmurrar o cobertor para dentro da mochila. Este finalmente cedeu, e Kita pôde fechar a mochila. -Bem, vamos continuar a andar.
-Já?
-Claro. Podes fazer esse exercício enquanto caminhas sem qualquer tipo de problema. Se te começares a sentir cansada, avisa que a gente pára.
Kaede quase se riu. Ficar cansada? Por cortar uma folha de papel com chakra? Quem ouvisse Kita a falar, provavelmente diria que o seu estilo de luta não a obrigava a deixar o seu chakra passar por uma lâmina enorme.
Com tais pensamentos em mente, Kaede franziu o rosto à folha de papel, concentrando-se no fino vinco. Aquilo era canja. Dentro de alguns segundos, estaria a entregar dois segmentos daquele mesmo pedaço de papel ao seu professor.

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Kaede limpou o suor da sua testa, utilizando a parte interior do seu braço para tal fim. Aquilo estava a ser muito mais complicado do que ela pensava. Já estava há algumas horas a concentrar o seu chakra, e o máximo que conseguira fora um corte de centímetro e meio, completamente tremido e amachucado.
-Pff… Que raio de papel é este?
-Isso… - Kita cuspiu o palito carcomido para o chão, farto de mastigar madeira mole. – Decerto conheces o papel utilizado para a identificação do elemento de um ninja, certo?
-Claro que conheço. – Kaede lutava por respirar, enquanto andava e se concentrava no papel à sua frente em simultâneo. Tal mostrava-se uma tarefa bastante dura.
-Esse tipo de papel é extremamente sensível ao chakra da pessoa que o está a segurar. O papel que tens na mão é o extremo oposto.
-Erm… Então… Mostra resistência ao chakra ou assim? – Arriscou Kaede, fechando um dos olhos enquanto revirava o pedaço de papel descuidadamente por entre os dedos.
-Perto disso. – Confirmou Kita, enfiando a mão no carapuço, despenteado os fios cinzentos que lhe cobriam a parte posterior da cabeça. – Não te vou dar pormenores, irás chegar às tuas próprias conclusões. Posso apenas assegurar-te que isso vai ser uma mais valia no teu estilo de ninjutsu.
Kaede fez uma careta, deixando-se cair no solo, perto do local onde Kita se havia sentado. O sol já ia alto, anunciando o pico do dia. Inspirando profundamente, Kaede cruzou as pernas e deixou o papel amarelado descansar no seu colo. Kita abriu a sua mochila, atrapalhando-se para retirar do interior da mesma algumas latas sem ter de mexer no cobertor que tanto lhe custara enfiar ali de manhã.
Ausente, Kaede inspirou o ar fresco da vegetação circundante. Só de pensar que dentro de um dia e pouco poderia nunca mais sentir aquele doce aroma…
-Sabes que temos até amanhã para chegar a Suna, certo? – Kita tinha o braço estendido na direcção de Kaede, segurando uma lata e dois pauzinhos, ambos cruzados no topo do recipiente de metal. Sem grandes cerimónias, Kaede acolheu os objectos na sua mão. Não tinha muita fome, mas tinha de almoçar qualquer coisa. Não se podia dar ao luxo de ficar com a barriga vazia a meio da tarde. – Bem… Vê se comes, não faças o mesmo que fizeste com o Ramen da outra vez.
Ainda meia ausente, Kaede abriu a lata. Um cheiro que lhe soou bastante agradável e familiar ressoou do interior da mesma. Kaede mal conseguiu conter a emoção inexplicável que invadiu o seu peito. Noodles. Há já algumas semanas que não tocava numa maravilha daquelas.
A rapariga estava ciente do olhar de Kita que incidia sobre ela, mas não se podia importar menos. Com uma vontade quase renovada (que lhe soou um pouco estranha, visto que ela raramente era capaz de comer quando não tinha fome – como era o caso), apanhou uma quantidade razoável de masseiros com os pauzinhos de madeira, levando-os à boca em seguida. Sentiu a massa enrolar-se no interior da sua boca, o sabor penetrar a sua língua, e quase lhe custou a mastigar. Há já algum tempo que não provava algo assim.
Kita começou a ingerir o conteúdo da sua lata quando Kaede terminou a sua. Pelo canto do olho, conseguiu ver a rapariga enfiar os pauzinhos no interior da lata, pousando a mesma de lado. Sem se demorar demasiado com o que quer que fosse, pegou na folha que tinha pousado há momentos e colocou-a entre as suas mãos. Fechou os olhos. Concentrou-se no vinco, na linha que devia guiar o seu corte. Sentiu a sua mente voar para outros assuntos, e de cada uma dessas vezes forçava-a de novo para a folha. Aquilo sim era um desafio: manter a sua concentração focada única e exclusivamente na folha.
Kaede não soube dizer quanto tempo se manteve nesta constante de concentrar o seu chakra, transportando-o para a folha, tentando cortá-la o mais precisamente possível. Apenas soube que, após aquilo que pareceram horas, a folha deslizou para fora das suas mãos. Ao abrir os seus olhos, viu Kita a segurar a mesma folha que ela tinha entre as suas palmas há momentos, segurando-a entre dois dedos à frente dos olhos. Observou-a atentamente durante algum tempo.
“Bem… Pensei que ela fosse capaz de cortar mais e de modo mais preciso.” Pensou Kita, medindo o corte que Kaede fizera na folha com os seus próprios dedos. Sensivelmente 3 centímetros. Depois de medir o corte, analisou-o mais profundamente. E algo não encaixava. “Estranho… Não me parece que ela estivesse a cortar a folha, mas sim a amarrotá-la. Será que…? Não, não é possível. Com certeza foi ela que amarrotou a folha com as mãos, mais nada.”
-Então?
Kita finalmente desviou os olhos da folha. Kaede espreitava curiosamente por cima do ombro dele, procurando perceber qual o interesse do professor no seu “progresso” até agora.
-Hmm… Estás a andar. – Anunciou ele de modo bastante teatral, levantando-se e pegando na sua mochila. – Vá, temos de continuar a andar. Mais um dia e estamos em Suna.
-Já não era sem tempo. – Desabafou Kaede, sentindo as plantas dos seus pés gemer com o seu peso.
-Não te lamentes, o pior ainda está para vir. – Trauteou Kita, olhando para o céu enquanto esperava que Kaede metesse a mochila às costas.
-Pior que isto? Só pode estar a gozar…
-Cala-te e trabalha, tens muito que fazer ainda. – Cortou Kita de imediato, espetando com a folha aberta no rosto de Kaede. Esta, meia atrapalhada, deixou a folha cair nas suas palmas.
-Um pequeno incentivo não lhe ficava nada mal. Há aqui gente a esforçar-se, sabe? – Protestou Kaede quase de imediato, acenando com a folha amarelada no ar.
-Queres um incentivo? Então cala-te, anda e trabalha.
Kaede bufou, mas pouca irritação se fez notar no ar expelido. Já deveria estar habituada a tal tipo de reacções por parte do seu professor, e em parte até as achava muito apropriadas. De que valia vangloriar e elogiar alguém por um trabalho meio feito, meio por acabar? Melhor fazê-lo no fim, quando tudo estivesse acabado e os resultados fossem claros.
Durante o resto do caminho, Kita e Kaede tiveram de parar várias vezes, já que o exercício que o professor incumbira a esta última se mostrava mais extenuante do que o que ele havia calculado. O percurso daquele dia terminou nas últimas réstias de vegetação, num local onde as ervas já se tornavam mais secas, e haviam vários tufos e montes de areia espalhados aqui e ali. A noite já se notava mais fria, contrastando grandemente com o calor que se fizera sentir durante o dia. O céu, já vestido de negro, escondendo a lua nova no seu manto, tornava todo o ambiente demasiado escuro para que se pudesse ver fosse o que fosse.
Nessa noite, o cansaço fez com que Kaede se deixasse adormecer. Enquanto segurava a grossa folha de papel em que ela havia trabalhado naquele dia, Kita não conseguia deixar de se torturar. Kaede cortara a folha, como ele havia esperado. Mas o seu corte ficara aquém do vinco por, pelo menos, centímetro e meio. E no todo, o corte apenas conseguira separar metade da folha. Mas o que mais o incomodava era o corte em si. Em vez do corte preciso e liso que ele esperara, olhava para um corte completamente irregular, feito numa espécie de zig-zag, completamente amachucado.
Enfiando a folha num bolso ao acaso, Kita observou o monte que se movia levemente à sua frente, e que supostamente era uma Kaede estafada e adormecida. Já não se preocupava com o que ela ia pensar quando descobrisse os verdadeiros motivos por trás da sua mudança para Suna, nem sequer se importava com o facto de ela puder, eventualmente, nunca a mais o querer ver por sentir que ele a atraiçoara.
Encostando-se algures ao acaso, Kita deixou escorrer algo da sua mão. No minuto seguinte, uma figura negra e esguia enrolava-se nos seus dedos, quase como que brincando com eles. Á luz fraca e difusa da fogueira que já se extinguia, um brilho surreal e bastante familiar oleou os locais onde a luz incidia, quase como se aquela figura fosse feita de um líquido espesso.
Inconscientemente, Kita deixou-se adormecer. Uma brisa retumbou sobre o terreno, apagando as réstias da fogueira. Em breve, a luz do sol voltaria a erguer-se, encobrindo a areia com o seu calor e a sua luz.