O sol brilhava no ápice do dia, era um dia normal como muitos outros, no parque do aldeamento da família Ketsu as crianças brincavam junto à fonte que jorrava água a uma altura considerável. Os suaves pingos de água caiam sobre a relva, os jovens deslizavam por esta usando-a como um escorrega e o divertimento era geral, todos riam alegres e divertidos, todos excepto um deles, um jovem rapaz de cabelos escuros encontrava-se sentado à sombra de um limoeiro alheio ao que o rodeava, focando a sua atenção num pequeno livro que segurava aberto sobre o colo. Esse rapaz, era eu…
A agradável brisa que se fazia sentir abanava os ramos do limoeiro fazendo cair algumas folhas ocasionalmente, uma destas folhas caiu-me sobre a cabeça e depois pairou lentamente até cair sobre o livro, afastei a folha da página 123 revelando a frase que esta ocultava.
“ (…) arrependeu-se do que viu (…) “
Ri-me do excerto que a folha tapara e fechei o livro, na capa preta lia-se em letras prateadas, “Por caminhos irrisórios”, o livro relatava a pitoresca aventura de um jovem pintor que havia perdido a inspiração a meio de um quadro, partindo então numa viagem em torno do mundo à procura de uma nova fonte para o terminar, entretanto vê-se metido em todo o tipo de situações caricatas até encontrar a sua musa que lhe iria finalmente devolver a determinação de terminar o quadro.
As aventuras do pintor permitiam-me sair dos muros do aldeamento de onde apenas me era permitido sair quando tinha recados para fazer e ver assim o mundo, mesmo que fosse pelos olhos de outra pessoa. O sol, lentamente, movia-se para oeste fazendo com que a sombra da árvore começasse a fugir, levantei-me e decidi que chegava de leitura, os meus olhos começavam a ficar cansados e a o pescoço doía-me de ter estado tanto tempo de cabeça inclinada para baixo, guardei o livro no bolso detrás das calças e afastei-me do parque, segui caminho para um agradável bar onde costumava passar algum tempo, apenas desfrutando de uma boa garrafa de sake e das boas vistas que passavam pela montra.
Empurrei a porta de vidro fazendo o alegre guizo tocar indicando que um novo cliente havia entrado, de imediato vi a cabeça da senhora Kameyo espreitar sobre o balcão, demasiado alto para ela, tinha de se colocar em bicos dos pés para poder ver sobre este.
- Tanathos! Olá, estás bom? Entra, entra, é costume? Já sei que é, nem precisas de dizer, senta-te que já te levo. – Disse a animada anciã, correndo para o interior da cozinha. Como habitualmente sentei-me na mesa encostada à janela, com vista privilegiada para a rua e consequentemente para a escola de dança tradicional, onde praticamente todas as raparigas da redondeza andavam. Esperei e esperei, a anciã chegou com o meu lanche, trazendo a habitual garrafa de saké e uns bolinhos caseiros que insistia em oferecer-me sem aceitar pagamento, mas não era por isso que eu esperava, o que eu esperava encontrava-se do outro lado da rua, eram 5 horas em ponto e a aula de dança acabara, as raparigas saiam da academia alegres e em passo acelerado, uma após a outro via-as passar sem notar sequer a minha presença, apesar de nem todas possuírem uma beleza do meu agrado havia outras por quem eu suspirava dada a sua exuberante aparência física. O desfile havia terminado tão rápido como havia começado, e foquei a minha atenção no saké e nos bolinhos da senhora Kameyo, quando ia a dar o meu primeiro gole o guizo da porta fez-se soar, olhei por cima do copo e vi entrar pela porta uma jovem rapariga de cabelos pretos, tão pretos quanto os seus olhos, vestia a habitual roupa de treino, umas calças largas de cor púrpura fazendo conjunto com o casaco que trazia fechado praticamente até ao pescoço. Aproximou-se do balcão e perguntou algo à dona Kameyo que me era inaudível, vi-a então afastar-se do balcão e dirigir-se a mim.
- Olha desculpa, tens lume? – Disse-me a rapariga, com um cigarro entre os dedos.
- Han, hum, aahhh. – Dizia eu remexendo os bolsos, completamente distraído, pois nunca trazia isqueiro comigo. – Áh, espera, dá-me o cigarro. – A rapariga deu-me o cigarro e tomei-o entre os dedos, fiz um simples selo e pronunciei – Endan! – Uma pequena bola de fogo saiu-me rente aos lábios, tão pequena que mal tocou no cigarro desapareceu, gastando toda a sua energia para acender o tabaco no seu interior.
- Uau, isso foi altamente! Obrigado, adeus. – Agradeceu a rapariga, esboçando um amável sorriso e piscando o olho. A imagem da rapariga havia-me ficado retida na mente, não era nada como a maioria das raparigas que conhecia, era amável e doce, bastante diferente das habituais fúteis e egoístas com quem tinha andado na academia.
Deixei em cima da mesa o que devia pelo saké e abandonei o local, começava a fazer-se tarde e o céu começava a pintar-se de laranja, preparando-se para receber a noite. A brisa agradável da tarde começava a ser substituída por uma aragem gelada e um ligeiro nevoeiro começava a levantar-se, os candeeiros na rua ligavam-se praticamente de forma harmónica com a minha passagem, iluminando o meu caminho de uma forma um tanto assustadora. Passei em frente à mansão da família Ketsu, ali moravam as entidades mais importantes da família, nunca vira ninguém naquela casa mas várias luzes projectavam-se pelas inúmeras janelas da imponente casa.
Continuei caminhando pelas ruas do bairro, estas encontravam-se praticamente desertas apenas se viam alguns gatos revolvendo o lixo ou as donas de casa sacudindo os tapetes à porta, de súbito um leve ruído chamou-me a atenção, olhei em meu redor mas não avistei nada de anormal, mal me virei de novo para a frente senti uma enorme força aterrar em cheio no meu rosto, fui projectado para trás caindo de costas sobre a terra levemente humedecida.
- Tão Tanathos, não vês por onde andas? Viste direitinho ao meu punho. – Jupo encontrava-se à minha frente, ele era o tradicional bully, bastante mais forte que os demais com a mania que era intocável, era bastante gordo e alto o que tornava a sua figura ainda mais altiva e assustadora.
- O que queres desta vez Jupo, hoje não tenho nada para ti. – Respondi, levantando-me lentamente e limpando uma pequena linha de sangue que me escorria pelo nariz.
- Tanathos porque és assim? Eu sou tão simpático para ti e tu tratas-me assim? Já sabes que se me deres o que eu quero somos melhores amigos para sempre. – Aproximou-se de mim lentamente, fingindo que sacudia o pó da minha roupa, sem querer encontrou o livro que levava no bolso interior do meu casaco, abri-o rebentando o fecho deste e retirou o livro. – Que é isto Tanathos? Por caminhos irrisórios, que titulo de livro mais maricas é este? – Uma gargalhada rompeu pela sua garganta insuflada em banha.
- Isso não te interessa, hoje não tenho dinheiro, mas amanhã terei todo o gosto em trazer-te o que arranjar, agora devolve-me lá o livro. – Pedi-lhe quase em súplica.
- Nada disso, a minha mãe pediu-me para ir comprar papel higiénico mas eu esqueci-me por isso isto vai ter de servir, fica bem Tanathos. – Deu-me um encontrão com o ombro e prosseguiu o seu caminho, levando o meu livro com ele. Arrastei-me até casa, devastado pela perda do que era o meu melhor amigo, mais um dia normal…
E assim foi, um dia como muitos outros, tirando o facto que este era o dia do meu 17º aniversário.