Mudança
O som da chuva despertou-a ao fim do que lhe parecia uma eternidade. Pestanejando várias vezes, agradeceu interiormente à pessoa que tivesse escolhido a iluminação. Permanecia no mesmo quarto desconhecido para onde fora levada pelos- quais eram mesmo os nomes deles? Expirou, esfregando os olhos com as mãos. Não sabia como, mas as dores no corpo tinham passado de insuportáveis, para desconfortáveis em apenas uma questão de horas (ou seria dias?), deixando-a sentar-se no colchão.
A sua respiração aliava-se às gotas de água a embaterem no vidro gelado, embalando-a. Testando até onde o seu corpo conseguia ir, tirou as pernas de debaixo dos cobertores quentes e pousou os pés no chão nu. Rezando para não cair para a frente, levantou-se, espantando-se com a facilidade com que o fizera.
O seu equipamento desaparecera, dando lugar a uma longa túnica azul clara que lhe tocava os pés, contrastando com o cabelo castanho. Nem quero pensar em quem foi que me trocou de roupa. Ignorando o rumo de pensamentos, caminhou até ao banco branco, o soalho estalando baixinho sob os seus pés descalços. Passou os dedos pelo tecido leve das cortinas, antes de as afastar, encontrando o vidro, decorado com a presença de gotas, a resguardar a vista de uma rua que ela não conhecia.
Deixou-se cair no banco branco surpreendentemente confortável, a sua mente perdida em pensamentos. “Mas enfim, a missão é matá-la certo?”. Quem é que me iria querer matar?! Delineou o percurso de uma das lágrimas do céu no vidro, a frieza da superfície substituindo o calor do dedo. Isto quer dizer que tenho a cabeça a prémio? Pensava que isso só ia acontecer quando eu fosse super poderosa e tal. Agora, não faz sentido nenhum.
O som da porta a abrir, despertou-a do transe, mas não a fez virar-se para trás. Os passos hesitaram um segundo, antes de iniciarem o percurso até à morena, a porta fechando-se de imediato.
— Não sabia que ias acordar tão cedo, senão não tinha ido a lado nenhum. — desculpou-se, antes de se abaixar ao seu lado — Como estás, Aruko-chan?
Libertou as gotas da prisão do seu olhar, desviando a sua atenção para o homem. Os olhos azuis-escuros fitavam-na atentamente, como se procurassem qualquer indício que pudesse indicar que ela estava prestes a passar-se. Mas ele não iria encontrar nenhum.
— Onde estou?
Fitou-a por mais uns instantes, antes de se sentar no chão, encostando-se ao banco. — Estás na casa de uma amiga minha. Podes vir para aqui sempre que quiseres, por sinal.
— Os meus pais?
— Estão óptimos, não te preocupes. Mandei-lhes uma mensagem a dizer que tinhas partido numa missão urgente e que por isso não tinhas tido tempo de os avisar. Não dei data deregresso, portanto acho melhor só voltares quando estiveres completamente restabelecida.
O silêncio recaiu sobre ambos, antes da Aruko o voltar a cortar. — Ontem, quando me apresentei, vocês disseram que já sabiam o meu nome. Como?
O moreno despenteou ainda mais o cabelo negro, antes de suspirar. — Bem, para começar, as apresentações foram feitas há dois dias. E sabíamos porque a tua avó nos contou. Não só sobre o teu nome, mas sobre o teu desgosto por tudo o que envolva correr, decisões precipitadas… Juro-te, acho que eras o único tópico de conversa que lhe interessava. — riu, deitando a cabeça para trás, perscrutando a expressão da rapariga.
Esperara muitas respostas, mas aquela, decididamente, não fora uma delas. A minha avó? Mas- Ela morreu. Eu via-a no caixão, sete palmos abaixo de terra. Eles estão a agir sob o nome dela? Mas isso não faz sentido! Só se eles não souberem que ela está-
— Desculpa, mas a minha avó faleceu há uns meses. — esclareceu, esperando por uma expressão de choque que nunca veio.
— Eu sei. — o sorriso triste que lhe lançou, fez com que o estômago da morena se revirasse — Uma perda enorme. Ela era fantástica, uma avó para mim também…— desviou o olhar, focando-se na janela — Enfim, não podemos fazer nada, certo? Deves estar cheia de fome.
Viu-o levantar-se, um sorriso plástico no rosto. Decidiu nesse mesmo instante que preferia vê-lo sério a ter que presenciar algo tão falso. Não contestou quando ele saiu do quarto, deixando-a de novo só. Abraçou os joelhos, ignorando a dor que proveio do movimento, os longos fios castanhos, protegendo-a de olhares indiscretos. Sorriu brevemente. Era o único tema de conversa, hum…
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Estava à espera que ela fizesse milhares de perguntas ou tivesse ataques de histerismo, mas deixando de parte as breves questões iniciais, a morena limitara-se a mergulhar no seu mar de pensamentos, deixando-o disponível para a observar. Não estava habituado a pessoas de dezassete anos que conseguissem estar caladas e paradas durante tanto tempo, além dela não parecer minimamente incomodada com a sua presença; pelos vistos, ele não existia naquele momento.
— Yori-san? — a súbita menção do seu nome, fez o homem piscar os olhos, ao mesmo tempo que se desencostava da parede.
— Podes esquecer o “san”, Aruko-chan.
— Qual é a tua habilidade com tesouras, Yori-san? — perguntou, ignorando a correcção.
O moreno arqueou a sobrancelha. — Boa o suficiente, eu acho. Porque?
Os dedos claros dela pentearam os fios castanhos, distraída. — Há alguém a querer matar-me, sabe lá Deus porquê. Mas não posso simplesmente voltar para casa e pôr em risco os meus pais, o Atsuko, o sensei… E estás aqui há quase um dia sem sequer tentares ir a lado nenhum, portanto, a tua missão deve ser ficar de olho em mim, pelo menos até recuperar completamente.
Não a interrompeu. Porque o faria, se ela estava certa? — Ou seja, estás atravancado comigo durante uns tempos. E não vou ficar aqui de braços cruzados a ver-te desfilar de um lado para o outro. — Yori não conseguiu evitar sorrir com o comentário. Eu desfilo bastante bem, sua mal agradecida. — E tu derrotaste-os, não foi? Isso quer dizer que és melhor que eles em alguma coisa.
Estava prestes a perguntar-lhe o que é que isso tinha a haver com tesouras, quando Aruko apontou para uma pequena mala de costura em cima de uma cómoda. — Para não ser um estorvo para ninguém, tenho que melhorar. Pelo menos o suficiente para não ficar KO a meio de uma batalha, e para isso… — ela agarrou num longo pedaço de cabelo antes de o fitar pela primeira vez nas últimas horas, o olhar dela não contendo nada que não fosse pura tenacidade — tenho que começar por mudar.
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Ajeitou os óculos, antes de enterrar de novo a agulha no tecido. Sabia que ele viria pedir-lhe abrigo, mas nunca pensara que viria uma rapariga atrás. Principalmente uma que estava a um passo de conhecer o grande mistério da vida após a morte. Abanou a cabeça. Ainda não a fora ver desde que ela acordara, mas queria ter a certeza que não teria um esgotamento nervoso só de imaginar que ela se iria esvair em sangue nas suas mãos, outra vez.
Levantou a peça em que estava a trabalhar, conferindo os resultados. Quando lhe tirara as roupas ensanguentadas, tinha aproveitado para lhes tirar as medidas, para grande indignação do Kenichi. Mas Yori não tinha parecido nada preocupado. Depois de se assegurar que a rapariga respirava e de lhe curar a grande maioria dos ferimentos, sentara-se numa cadeira da cozinha, a falar com a Loxos entre sussurros.
Quem não conhecesse a dupla, iria pensar que Kenichi possuía problemas de bipolaridade, tendo como companheiro um homem com uma paixão demasiado aguda pelo sexo feminino e falta de preocupação com os sentimentos alheios, e que tinham salvo a rapariga numa tentativa de quebrar o tédio. Enfiou a nova linha pelo buraco da agulha, voltando de imediato ao trabalho. Mas Kenichi não tinha voltado do trabalho, e Yori mantinha-se do lado de fora do quarto da morena, ausentando-se apenas quando necessário e o mais brevemente possível.
A mulher sorriu. Sim, os outros não podiam estar mais errados.