Os Tenkei

O Imagawa agarrou no chifre ornamentado com cuidado, rodando-o nas suas mãos sobre o seu olhar atento. Nunca vira algo parecido...
- O Kousen no Keiteki é o chifre de guerra que permite o chamamento dos Deuses. - Sobre o olhar confuso de Katsu, Turo suspirou, lambendo os lábios rugosos antes de retomar a explicação - A cada uma nova geração de ninjas, os Deuses escolhem os seus Tenkei, oráculos divinos, que se transformam nas suas representações humanas, tanto em personalidade como aparência e poder. Isto aconteceu quando os Deuses perceberam que não viveriam para sempre e que precisariam de "herdeiros" para as suas posições, daí a criação dos Tenkei. No entanto, nenhum dos humanos é informado que foi escolhido como um Tenkei, vivendo as suas vidas normalmente como pessoas especiais sem nem sequer o saberem. Para felicidade dos Deuses a sua longevidade nunca foi comprometida, tornando os Tenkei um mero capricho que depressa se perderia como muitas das outras tradições... Se um erro não fosse cometido! - O súbito agravamento do tom de voz do velho surpreendeu Katsu, que até então não percebera que estava tão submerso na história - Um dos Tenkei matou outro por uma razão qualquer, não me consigo lembrar agora mas sei que foi algo fútil, o que levou a revolta de alguns Deuses. Mesmo que os Tenkei não fossem necessários, ainda eram "filhos" deles, pelo que a morte de um levou à discórdia de muitos. Descobriu-se mais tarde que os Tenkei têm uma forte atração entre si, podendo influencia-los a incontroláveis desejo de morte ou amores incrivelmente profundos. Percebendo que os seus caprichos estavam a deixar o mundo fora do controlo, considerando que estes arranjavam conflitos entre si por razões banais e sem sentido, os Deuses tiveram de organizá-los e estabelecer-lhes um propósito. Criaram uma série de provas, numa dimensão paralela ao nosso mundo, que colocam todos os Tenkei em variados testes cuja recompensa seria um único desejo. Sedentos por um poder tão incrível, os Tenkei depressa participaram nestas provas humanamente impossíveis, que podiam ser de inteligência, poder ou até mesmo de sedução. Estas provas ficaram conhecidas como o Torneio dos Deuses, e até à data apenas dois se realizaram. O primeiro foi vencido por um Mosashi, Tenkei da Deusa Amaterasu, que desejou se tornar um Deus como a sua "mãe". Esta concedeu-lhe o pedido, sobre o pretexto que teria de passar uma última prova: reaver um objeto qualquer, algo sem grande valor, de um dos templos de devoção a Amaterasu, que estava submerso num oceano de chamas negras. Mosashi aceitou, saindo da dimensão paralela e dirigindo-se ao templo. Desapareceu sem deixar rastro e, como desde então não houve qualquer outro registro dele, desconfia-se que tenha morrido na prova, não completando o seu desejo. Décadas se passaram quando começou o segundo Torneio dos Deuses, este mais interessante para o que te quero contar. A Gaina participou nele... - A boca do Imagawa abriu-se de espanto, olhando para o velho que tinha a tendência de molhar os lábios enquanto falava - Não sei se ela alguma vez foi um Tenkei ou se arranjou alguma maneira de "burlar" as regras estabelecidas pelos Deuses, mas ela conseguiu participar e ganhou... Desejou poder tornar-se a Deusa dos humanos, de poder controlar qualquer humano do mundo e torna-los todos os seus pequenos ratos de laboratório, desejando recriá-los para uma raça muito melhor. Nenhum dos Deuses ficou confortável com tal desejo, pelo que foi Susano`o a impor-se, não escondendo a sua insatisfação com algo tão ambicioso. Caso Gaina conseguisse derrotar Susano`o o seu desejo seria cumprido e ninguém a impediria. E ela quase o conseguiu! - O Imagawa já não conseguia disfarçar o seu espanto - Mas este teve força e vontade suficientes para expulsá-la da dimensão paralela antes que ela fosse capaz de dar o golpe final. Os Deuses ficaram preocupados com o incidente da Gaina, perguntando-se se outros Tenkei seriam como ela. Assim, criaram o Chifre Dourado, Chifre da Guerra ou Chifre dos Deuses, como lhe preferires chamar, que seria o único passe condutor para o Torneio dos Deuses. Este objeto foi criado para impedir que Gaina, e outros humanos igualmente ambiciosos, fossem capaz de entrar novamente no torneio, já que apenas um verdadeiro Tenkei pode soprar no Keisen no Kouteki. Nunca ninguém o chegou a usar, portanto não sei muito mais sobre ele. Gaina pediu-me para encontra-lo e aqui o está. Agora vai entrega-lo e diz-lhe para cumprir a sua promessa!
Quando o velho acabou de falar, tossicando de seguida, não reparou que Katsu ainda estava estupefacto com o que acabara de ouvir. A existência de tamanho capricho divino que de seguida se tornou algo muito mais sério era inacreditável. O envolvimento de Gaina em algo tão incrível e a sua quase ascensão a Deusa eram ainda mais alarmantes. O Akatsuki apenas percebeu que ainda havia muito que não sabia sobre a sua líder e que lhe devia perguntar quando fosse entregar o Kousen no Keiteki. Ergueu-o calmamente para debaixo da luz da vela segurada por Turo até conseguir ver a sua superfície dourada, analisando-o calmamente. Não podia ser muito mais do que aparentava...
- Dizem que os Tenkei não são capazes de resistir a não tocar o Kousen no Keiteki. Uma inexplicável atração leva-os a soprar no chifre e "iniciar" o terceiro Torneio dos Deuses, mas é apenas especulação, sei muito pouco sobre esse assunto. - O velho virou costas a Katsu, caminhando para a escuridão de que saíra - Agora vai-te embora, não tens mais assuntos a tratar aqui!
Olhou intensamente para o chifre. Não sentiu atração nenhuma ou vontade de tocar o chifre... Caiu uma estranha desilusão por provavelmente não ser um desses tais "Tenkei", mas uma réstia de esperança levou-o a colocar o Kousen no Keiteki na boca. Lembrou-se de que poderia desejar qualquer coisa: a reconstrução do seu clã, a ressuscitação de todos os que morreram em Kusagakure, entre muitas outras coisas. Encheu o peito de ar e soprou com toda a força e vontade que tinha...
Mas nada...
Nada aconteceu, para novo desapontamento. Um chifre normal provocaria qualquer tipo de som, mas aquele dourado nada fez ante a tentativa frustrada de Katsu. Suspirando ao pensar que uma das formas de recuperar a glória do seu clã estava demasiado longe de si, escondeu o utensílio por debaixo do seu manto azul e olhou em frente. Turo desaparecera por entre a escuridão da sua barraca, levando a que o Imagawa também saísse dali.

Após uma longa corrida, retornou ao lado mais rico e nobre de Cha no Kuni, apressando-se a chegar ao seu quarto de hotel. As raparigas não estavam no quarto e já era quase noite. Decidindo confiar a segurança da sua pequena a Ayame, tentou despreocupar-se (em vão), preparando alguma coisa para comer, pousando o chifre sobre a mesa. Alguns minutos depois bateram à porta, aparecendo Sekima com uma invulgar raposa aos braços. A sua alegria era perfeitamente transparente pelo seu sorriso deliciado enquanto os seus dedos acariciavam o suave pêlo daquela raposa cinzenta.
- Outro animal, pequena? Não chegou aquele maldito esquilo?! - Admoestou Katsu, embora não conseguisse estar verdadeiramente zangado com a sua filha, abaixando-se e pousando também a mão sobre a raposa, cuja cauda se enrolava carinhosamente em torno do pescoço de Sekima numa espécie de invulgar abraço - Onde a foste buscar?
- É um amigo meu! - Respondeu Ayame, surgindo uns momentos depois ofegante e com um ar exausto. Teve de encostar-se ao marco da porta para poder descansar um pouco - A tua filha... têm muita energia...
- Papi, a Ayame brincou comigo o dia todo e olha o que ela têm! Chama-se "Kouseku"! - Pelo tom de voz da pequena, o Imagawa percebeu que Sekima ainda tinha mais dessa energia para gastar, contrastando com Ayame que já estava sentada e ainda a tentar acalmar a respiração.
- Chama-se... Kousetsu, Sekima...
- Kousetsu! - Corrigiu-se a criança num sorriso infantil, entrando de seguida pelo quarto adentro e distraindo-se nas suas brincadeiras com a raposa que aparentava também gostar bastante da humana.
- Desculpa se foi muito cansativo, Ayame. Nem eu aguento brincar tanto com a Sekima! - Desculpou-se Katsu, estendendo a mão e ajudando a Midori a erguer-se, notando que a sua respiração finalmente amainava - Queres entrar?
- Não, não, já é quase noite, tenho de voltar para casa antes que o irmão fique demasiado preocupado... - Katsu estranhou o peculiar ênfase, sorrindo - E ninguém o quer demasiado preocupado. Mesmo assim obrigada pelo convite e, só para te lembrar, daqui a nada vamos ter o nosso primeiro duelo! Amanhã deveríamos treinar...
- Tudo bem, ainda estou à espera de ver as habilidades de uma rapariga tão determinada quanto tu! - A adolescente olhou para ele com interesse, parecia muito mais social e animado do que a sua primeira imagem transpareceu... - Sekima, anda despedir-te da Ayame!
A criança veio a correr imediatamente para a porta com a raposa cinza a correr atrás de si alegremente.
- Não vás já embora! Fica mais um pouco! - Pediu a pequena com a sua voz doce, conseguindo arrancar um sorriso da cansada Ayame.
- Amanhã brincas mais um pouco com o Kousetsu, mas agora tenho mesmo de ir, Sekima! - Agachou-se e afagou os cabelos grisalhos da criança, que sorriu com o carinho, agarrando de seguida na raposa para se erguer e virar as costas - Vejo-vos amanhã, então!
A porta fechou-se quando a adolescente desapareceu, deixando Katsu com uma Sekima que, embora triste por ter de se despedir da sua nova amiga, se contentou por no dia a seguir poder reaver tanto Ayame quanto Kousetsu. Quando se sentou no sofá, não demorou muito a bocejar e consequentemente adormecer. Rindo-se da sua filha, o Imagawa beijou suavemente a sua testa, retirando um cobertor de um dos armários e colocando sobre o corpo dela. Desviou o olhar para o chifre dourado ainda pousado na mesa. Se não podia fazer nada com ele então apenas esperaria para terminar o Torneio de Todos os Ranks e entrega-lo a Gaina...
O dia a seguir foi muito mais calmo. Pela manhã tanto Katsu como Ayame treinaram arduamente, aprendendo mais sobre as habilidades um do outro e traçando alguns planos. Embora a Midori estivesse longe de ser a melhor Kunoichi que o Akatsuki já vira, ainda conseguia ser espantosa em diversos quesitos, principalmente pela suas diversas habilidades com a vegetação à sua volta. A pequena Sekima distraiu-se com o seu novo melhor amigo, o Kousetsu, nunca se afastando demasiado do pai enquanto este treinava. Quando o roncar dos estômagos começou a ficar geral, decidiram parar para almoçar. Como ninguém se lembrara de trazer comida, optaram por irem até ao apartamento dos Imagawa no qual desenvencilhariam qualquer coisa para comer. Pelo caminho, Katsu e Ayame iam conversando entre si amistosamente, para espanto da adolescente, falando de pequenos pormenores das suas vidas pessoas (ela percebeu que o Imagawa era bastante reservado quanto a isto) e muito mais sobre a luta que se avizinhava. A conversa interrompeu-se quando pararam à frente da porta do apartamento e repararam na maçaneta queimada. Pedindo silêncio ao colocar o indicador sobre os lábios, Katsu tocou na porta para abrir suavemente, entrando com cautela. O seu coração palpitava fortemente, incerto no que iria descobrir...

A porta abriu com um som arrepiante e o vulto depressa sentiu o fedor nauseante e a parca iluminação da barraca. Uma sombra afastada de si mexeu-se, sobressaltando o vulto e levando-o a unir ambas as mãos em um selo.
- Deves ser tu, Gaina... - A voz gasta e vagarosa revelava-se ser a de Oogata Turo, que iluminou uma vela para mostrar o seu rosto rugoso - Finalmente, após tantos anos vens cumprir o que prometeste...
O vulto não disse nada, afastando as mãos uma das outras ao perceber que aquele pobre velho não representava qualquer tipo de perigo. Os olhos com as pupilas quase brancas de Turo perscrutaram a mulher à sua frente, molhando constantemente os lábios.
- Tu não és a Gaina!
Falou antes da vida se retirar lentamente do seu corpo. Um braço feito de pedra trespassou-lhe o peito, dando uma morte imediata ao pobre velho que não teve forças para impedir de jazer na sua própria poça de sangue.
- Serviste-nos bem enquanto foste vivo, Oogata Turo. Descansa bem à beira do teu irmão!
A mulher agachou-se e soprou a pequena chama da vela, apagando-a e deixando que algumas brasas esvoaçassem pela escuridão antes de também por ela serem consumidas.