Encontros Nocturnos
Parte 2 de 2
- Citação :
- Nos olhos do dono do cão via-se tanto ódio que nem toda a chuva e vento conseguiam camuflar. A rapariga percebeu que a sua ameaça de matar o cão podia ser facilmente concretizada.
Por causa da pouca claridade não se conseguia distinguir bem as feições do homem, mas aparentava ser jovem, tinha o cabelo e a roupa escura, era bem constituído e tinha ligaduras à volta das mãos e que chegavam até aos cotovelos. A chuva não parava nem abrandava, o que não permitia que Riri conseguisse observá-lo melhor.
O pêlo do cão ficara uma mistura de amarelo, bege e muita lama, este continuava na mesma posição na qual se tinha posto logo a seguir a ser pontapeado para longe. O dono tinha as costas direitas, os pés afastados praticamente à largura dos ombros, os punhos cerrados e os olhos postos no cão, tal e qual como se, por acaso quisesse, o conseguisse matar apenas com o olhar, além disto estava encharcado e não haveria parte nenhuma do seu corpo que não estivesse molhada e de certo que não estava importado com o frio. Riri conseguia ver que lhe escorria água pela cara, ela cada vez via pior, pois a chuva ficava mais forte a cada momento que passava.
- És um inútil… e pensar que te dou comida e tecto há tanto tempo… - O estranho olhava agora para o cão com desprezo. – Vou-te deixar aqui, morre longe de mim e assim não me dás mais trabalho!
Riri conseguia ver tudo do sítio onde estava. Viu o dono a afastar-se e o cão quieto no mesmo lugar, mesmo magoado seguia as ordens que lhe tinham sido dadas. Quando achou que o dono já não estava perto, desceu da árvore e ficou a olhar para o cão. Começou a dar pequenos passos e, enterrando cada vez mais os pés na lama, foi de encontro ao lugar onde o cão estava deitado. Este seguia-a atentamente com o olhar. Nele havia medo, frustração, exaustão e desconfiança com tudo o que o rodeava. Chegou a uma altura em que devia estar apenas a um metro dele, então, baixou-se, de forma cuidadosa e sem desviar o olhar dele, queria fitá-lo directamente, mas sem o assustar.
- Bichinho lindo, estás bem? – Ela tentava agora ganhar-lhe a confiança e por isso estendeu-lhe uma mão como se faz habitualmente com os cães.
O cão estava desconfiado e rosnou-lhe, tudo o que se tinha passado momentos antes fez com que ele sentisse medo de tudo, por isso não a olhava directamente, mas sim de baixo para cima, com uns olhos grandes, brilhantes e com um toque de terror, mas que apesar de tudo pareciam pedir suplica.
- Ok, está bem… Acho que ainda aqui tenho uma bolacha no casaco. – Depois de procurar bem no casaco molhado, Riri encontrou algo que outrora fora uma bolacha, mas que agora apenas parecia um bocado de papa a desfazer-se, mesmo assim deu-a ao cão. Primeiro, ele afastou o focinho para o lado, mas os seus instintos básicos levaram-no a aceitar a comida e a ultrapassar a barreira que o separava da rapariga que tinha aparecido do nada. Por isso comeu-a. – Não foi assim tão mau, pois não?
Depois de ela lhe fazer umas quantas festas na cabeça, o cão deixou de estar desconfiado como antes. De repente ouviu passos a vir naquela direcção.
“Será que ele voltou?”, Riri não sabia quem era, mas achou melhor agarrar no cão e voltar a subir para cima da árvore. Ele primeiro não achou muito agradável, mas houve algo que o fez voltar a deitar a baixo mesma a barreira, que naquele momento já era nula. A rapariga não parecia representar qualquer tipo de perigo e de qualquer forma, tudo era melhor do que voltar a encarar o velho dono, assim, deixou que ela lhe pegasse. E ela fê-lo mesmo a tempo, se tivesse sido um pouco depois, o sujeito que tinha batido no cão tinha-a visto.
- O estúpido do cão ainda há bocado aqui estava… Queria aquela coleira que valia um bom dinheiro… - O homem ficou parado debaixo da chuva fria a reflectir. Ele devia conhecer bem o cão e saberia que ele acataria qualquer ordem sua.
“Seria por causa dos maus tratos ou da pura lealdade?”, no momento menos oportuno este pensamento assaltou a mente de Riri, o que a fez vacilar e agarrar um velho e frágil tronco para se segurar, mas este rapidamente partiu devido ao seu peso e o do cão.
“Estúpidas árvores velhas…”. Com um olhar desconfiado o vulto percorreu tudo à sua volta, procurando a origem do som. O esforço para aliviar o peso no tronco onde estava e para suster a respiração, tinha sido muito importante e complicado de executar. Após minutos a observar tudo à sua volta e à procura de qualquer tipo de sons o estranho observador caminhou relutantemente até ao trilho pelo qual se tinha guiado até àquele lugar. Riri sabia que ele, fosse lá quem fosse, tinha ficado desconfiado com o que se passara, tanto com o desaparecimento do cão como o tronco a partir-se, mas preferiu pensar que o vulto tinha caído na ilusão de que o cão tinha fugido e que não valeria a pena ir procurá-lo, tendo também ignorado a sensação de desconfiança e mal-estar que aquele Ser lhe produzira.
Quando finalmente viu o homem a desaparecer por entre as sombras, Riri suspirou de alívio.
-
*uff* … Estava a ver que era desta que ele nos apanhava… Foste um bobbi muito bonito por não fazeres barulho. Agora é melhor irmos para casa.
Com o cão ainda no colo, a rapariga esperou silenciosamente até tudo ficar novamente parado e medonho. Só quando achou que já estava completamente sozinha e segura de que mais ninguém lhe voltava a fazer uma surpresa indesejada naquela noite, é que saltou para o solo e caminhou por entre a lama e as poças de água, que no meio da escuridão e da chuva, eram impossíveis de distinguir.
Quando chegou a casa já tinha parado de chover, mas continuava com o cão no colo. Ela sabia que ia ter problemas se entrasse pela porta da frente e os pais reparassem no estado em que ela estava e que tinha adoptado um cão sem autorização, por isso achou melhor voltar a subir pela janela. Os pais teriam que esperar que ela contasse tudo no próximo dia… ou noutro dia qualquer.
No quarto estava tudo silencioso, pensou que provavelmente os irmãos tinham reparado que ela finalmente chegara, sabia bem como eles eram.
- Bem, eu tenho que ir tomar um banho e também não te posso deixar dormir assim na minha cama. Vamos, banheira!
Depois de lavar bem o cão e o secar com toalhas, foi buscar uma ligadura para a meter à volta da barriga dele, local onde tinha sido pontapeado, e a seguir foi buscar alguns produtos que encontrou na casa de banho para lhe curar os cortes que tinha no focinho e nas patas. De seguida, foi a sua vez de tomar banho. Quando acabou sentia-se muito mais confortável e tinha conseguido separar-se da vaga de mal-estar que sentia anteriormente. Apesar de já se sentir melhor e de lutar com todas as suas forças para não pensar no que aconteceria se tivesse sido seguida, conseguiu acalmar-se e afastar tais pensamentos da sua mente.
Após longos minutos perdidos em olhares silenciosos que eram trocados com o cão, falou com ele.
- Vou ficar contigo na mesma, não te preocupes. Também tenho que te dar um nome… - O olhar do cão estava agora mais vivo e isso fê-la recordar-se da lua cheia que estava no seu naquela noite. – E que tal Kouji? Gostas? Significa luz.
Ela sempre soube que todos os animais, na sua natureza, tinham alguma forma de comunicar e compreender todos os outros animais que os rodeavam. Não sabia se era apenas o cansaço a apoderar-se dela, mas conseguia jurar que o cão tinha acenado com a cabeça, tal como quando uma pequena criança fixa o olhar num chupa e a mãe pergunta
“Queres um?”, a criança anui com a cabeça, num movimento lento e com um grande sorriso envergonhado.
Fosse como fosse o cansaço teve mesmo uma grande influência nela. De tal modo que adormeceu instantes depois, com a cabeça apoiada no próprio braço e o Kouji aninhado mesmo ao lado dela. Talvez uma forte amizade se tive criado agora, algo destinado a acontecer.