Acordei de um sonho. Era um bom sonho...Uff, digamos que ainda não tinha acordado. Mas podia ouvir gritos pela casa toda. Mal me tinha mentalizado do que se passava. O meu pai gritava a minha mãe que ela o tinha traído. Eu podia chorar e esconder-me nos lençóis e esperar que tudo parasse, mas depois iria-me arrepender. Mais valia ser eu a levar que a minha mãe. Sai da cama, em passadas largas, e desci as escadas, no escuro da noite. Enquanto as descia, sentindo os pés gelados e uma brisa fria cruzando comigo, podia ouvir os gritos ainda mais audíveis e coisas a quebrarem-se. O meu coração estava aos saltos e eu transpirava, mas estava gelada. Os meus olhos arregalaram-se quando viram tudo aquilo. A minha mãe sentada no chão a tentar defender-se e o meu pai a bater-lhe. Também havia sangue no chão e kunais no chão ou espetadas nos móveis. Tendo estas, sangue também, da minha mãe. Ela chorava e dizia para ele parar. Dizia que não o tinha traído e que o amava. Claro que ele desconfiava, ele só acreditava no que ele mesmo dizia e no que as outras pessoas diziam. A minha opinião e a da minha mãe não contava para nada. Simplesmente, não eramos nada naquela família. Se se pode chamar família...
- CHEGA! - Gritei nas escadas. Nem sei como a minha voz não saiu trémula. Estava segura de mim mesma, como era possível?
O meu pai parou e olhou para mim. Nunca o vi com um olhar tão matador como agora mesmo. Via-se a fúria no seu olhar e respirava furiosamente. Nunca senti tanto medo. Sentia a adrenalina a correr por todo o meu corpo e tremia mais que nunca. A minha mãe começou a gritar para ele não me bater. Eu pensei em fugir para o quarto mas ele seguir-me-ia e era só mais uma vez que eu ia levar. Já estava habituada. Ele veio até a mim, e agarrou-me no pescoço e ergueu-me. Eu sentia-me indefesa, mas ao menos, salvaria a minha mãe.
- Ishi, eu já te disse que não te deves meter em assuntos nossos. - Apertou-me mais o pescoço. Mal conseguia respirar. Só abanava as pernas para me tentar libertar e levei as mãos ao seu braço para me conseguir largar, mas não dava.- A tua mãe é uma puta. Uma puta! Aposto que andou com mais de metade dos homens de Kumo! - Disse irritado e fazendo isso notar-se na força com que agarrava o meu pescoço.
- Para de fazer isso a tua filha! Ela não tem culpa! - Gritou a minha mãe entre soluços.
- Cala-te puta. - Ordenou o meu pai.
Então a minha mãe admitia que tinha andado com vários homens? Não podia ser. Ela não podia fazer uma coisa dessas, e não a mim.
Mandou-me contra a parede. Fechei os olhos até cair no chão com dores nas costas e no joelho. Queixei-me um pouco pensando em desistir. Mas mesmo assim, não o fiz.
- Era assim que aparecia aquele dinheiro cá em casa?! - Gritou o meu pai indo outra vez até ela, olhando-a apenas. - Responde-me!
- Aquele dinheiro não tem nada a ver com isto! E eu já te disse que não dormi com mais nenhum homem. -Defendeu-se a minha mãe.
O meu pai fê-la levantar e agarrou uma kunai. Ele nem se preocupava se eu estava ali ou não, se eu iria ficar traumatizada ou não, com toda a merda que eles estavam a fazer. Espetou-lhe a kunai variadas vezes na barriga. Isso teve um efeito em mim fazendo-me correr até eles e meter-me á frente da minha mãe, mas o meu pai empurrou-me com a mão em que tinha a kunai fazendo-me um profundo corte no braço. Eu respirava cada vez mais rápido e já sentia os meus olhos molhados. Cai no chão, gritando de dor, mas nem mesmo assim ele se redimiu a olhar para mim, para ver o meu estado. Continuou a esfaquear a minha mãe até lhe dar um último golpe na testa. Ela olhou para mim com o olhar mais doce que tinha e tentou pronunciar qualquer coisa, parecia um obrigado ou algo. E eu não fiz nada. Eu podia ter morrido no lugar dela. Eu podia tê-la salvo, mas não fiz nada. Deixei-me ficar ali como uma menininha cheia de medo. Sim, era mesmo isso que eu era. Fraca.
Encostei-me à parede a chorar, agarrando-me os joelhos. Mas ele não tinha acabado.
- A tua mãe é uma puta, e tu também o vais ser. És farinha do mesmo saco. Nunca valeste nada. Nunca fizeste nada por esta família. - Ele agarrou-me no braço em que me tivera ferido e apertou. Aquilo ardia e doía.
- Pai, não! - Tentei dizer algo, mas as lágrimas e o nó que tinha na garganta não me deixavam fazer nada.
- Tu vais pelo mesmo caminho, Ishi. Não posso permitir isso. - Quando ele acabou de dizer isto, espetou-me a kunai na barriga.
Então, era isto que se sentia quando se levava uma facada. Dor, medo, arrependimento... Levei a minha mão à minha zona abdominal e tentei tapar a ferida, mas o sangue jorrava como uma torneira aberta.
- Pai, por favor... - E quando ele ouviu as minhas palavras, voltou a espetar-me a kunai nas pernas e mais uma vez na barriga, atirando-me contra a parede novamente.
Eu queria morrer, e provavelmente, era mesmo isso que me ia acontecer. Deixei-me fechar os olhos. Só os abrindo quando ouvi gritos novamente.
- Eu não posso viver num mundo onde serei julgado pelas mulheres de minha casa. O céu será o melhor lugar para mim, e se vos encontrar lá, irei sentir vergonha para o resto da minha vida no paraíso.
Vi-o levar a kunai ao pescoço e vi sangue a pingar. Ele tinha cortado a própria garganta. Tinha-se suicidado.

Acordei aos gritos e a chorar. Outra vez... Mas será que nunca iria parar de sonhar com isto? Ergui o meu tronco, sentando-me. Levei a mão ao pescoço, massajando-o. Sentia-o molhado, tinha transpirado muito, como sempre. Eu não aguentava mais. Quer dizer, se passado dois anos, ainda acordava a gritar e a chorar pelo que aconteceu... Nunca iria melhorar. Teria de aprender a lidar com isto. Vivia na casa onde tudo acontecera. Um pouco mais remodelada, mas quase nada tinha mudado. Era de noite e sentia a corrente de ar, a refrescar-me a pele transpirada. Tinha deixado a janela aberta.
Eu não valia nada. O meu pai sempre tivera razão. Pensava todos os dias sobre isto. Sobre tudo o que ele disse. Era como se tudo tivesse acontecido ontem. Levantei-me e sentei-me no parapeito da janela. Deixei que o fresco da noite e a sua brisa, me esvoaçassem os cabelos e as roupas. Deixei-me ficar ali, a pensar em tudo. Outra vez, e outra vez... Como iria fazer para o resto da minha vida. Não sei porque é que nunca pensei em matar-me.
Olhei para a lua redonda e brilhante no céu negro. Adorava a lua. Era uma das coisas mais belas da natureza. Ouvia os mochos, que estavam nas suas árvores atentos ao que se passava.
Suspirei profundamente e olhei para o meu braço onde estava a cicatriz de uma das facadas. Aquela marca iria ficar ali para sempre e eu não podia fazer nada. Sentia-me mais sozinha que um cão abandonado. Não confiava em ninguém e muitos dos meus pensamentos eram suicidas. Apesar de nunca ter pensado seriamente em morte, era o que mais me passava pela cabeça. E o mais esquisito é que imaginava como as outras pessoas iriam morrer e que era eu que o fazia.