Tinha acabado de me enfiar nos calções pretos e de vestir o top. Com as mãos levei todos os cabelos castanhos para trás das costas e passei-lhes as mãos. Deixei a água correr para depois encher as minhas mãos com ela e lavar o rosto. De seguida, sequei-o e ajeitei mais uma vez o meu cabelo, ajeitando também a bandana. Estava mais ou menos.
Saio daquela casa maldita – não sei porque nunca pensei em sair dali, afinal era o local onde tudo tinha acontecido e que me fazia lembrar sempre tudo. Ou talvez ainda lá estava porque era a única memória que preservava da minha mãe. – e caminhei para o centro da vila. Ouvia música e pessoas a rirem. Havia muitas luzes e muitos locais abertos de vendas. Continuei a caminhar sem olhando para as pessoas, mas sem realmente as ver. Estava perdida nos meus pensamentos. Na minha memória encontrava-se a minha mãe. Como eu tinha saudades dela, ia-me arrepender para sempre de não ter feito nada. Enquanto continuava a pensar nisto, ouvi um risinho histérico e a voz de uma miúda. Abanei a cabeça e olhei para ela. Era loira, com cabelos compridos e olhos azuis. Tinha um bom corpo, daqueles que todos os rapazes ficam babados por ver, e parecia ser bastante provocativa, mas mesmo assim um pouco insegura. Estava agarrada a um rapaz alto com olhos castanhos, e cabelo preto com franja ligeiramente erguida. As suas vestes eram negras. O seu olhar era hipnotizante, visto que eu estava a olhar para ele e não conseguia desviar. Senti que abria um pouco a boca ao ver aqueles olhos. Ele fez um pequeno sorriso provocante. Abanei a cabeça e voltei a olhar para a miúda que parecia irritada.
- Estás a olhar? – Perguntou ela com a mão na anca e a cabeça um pouco inclinada.
Eu ergui as sobrancelhas e respondi. – Sabes, coisas feias também chamam atenção. – Mantive-me séria.
Começava agora a ver como ela ia morrer, como a minha imaginação o permitia. Só tinha algumas imagens. Imaginei que a rapariga iria morrer espetava numa árvore com várias kunais e katanas atravessadas no seu corpo e presas à árvore. Reparei também que não tinha olhos e a sua boca estava aberta, como se tivesse apanhado o maior susto da sua vida. Fiquei um pouco assustada quando regressei à realidade.
- Eu não sou feia! Pois não, amor? – Virou o rosto para o rapaz.
- Não me vou meter nas vossas tretas. – Apenas comentou, e sentou-se no banco, suspirando e massajando o pescoço. Olhou mais uma vez para mim com aquele sorriso sombrio. E eu não conseguia imaginar a sua morte. Apenas me passavam pela cabeça: corvos, tempestades, luar, ventania, e sombras. Era tudo do mais sombrio possível. Mas porquê?
- Dói, não é? – Perguntei-lhe.
- O quê? – Questionou-me de sobrancelhas erguidas e com a voz mais irritante que eu alguma vez ouvi.
- Ser tão pita. – Encolhi os ombros.
- Eu não sou pita! – Tentou argumentar.
- Oh, por favor. – Suspirei. Reparei que o seu namorado, se ria. Que lindo, e o respeito?
- Ouve lá, vou-te meter na linha, sua estúpida. – Ameaçou-me semicerrando os olhos.
- Não queiras ir por esses lados, é melhor. A menos, que não queiras conservar os dentes nessa boca. – Sorri. Meu deus, ouvir as conversas de algumas raparigas mais populares, até dava jeito. Não que eu as ouvisse de propósito.
- Olha a piada! – Desatou a rir com um riso falso, inclinando-se para trás. Eu fiquei a olhar para ela, aborrecida. Desviei o meu olhar, por segundos, para o rapaz, acho que não podia conter mais o riso.
- Bem, vou-me embora. – Virei-lhes as costas e recomecei o meu caminho.
- Sim, vai-te embora, antes que o teu pai te bata mais por andares na rua… Ou esquece, ele está morto e enterrado. – Ela riu-se de forma maliciosa.
Eu não tinha acabado de ouvir aquilo, pois não? Mal ouvi aquilo, senti turbilhões de sentimentos. Virei-me e vi o seu sorriso de raposa. Ela tinha maldade nos olhos. Olhei para o rapaz, novamente, e ele tinha ficado sério. Também não tinha gostado do que a namorada tinha feito, mas o que interessava não é?
- Retira o que disseste. – Ordenei, sentindo a minha voz trémula e cheia de raiva. Cerrei os punhos.
Ela aproximou-se de mim e abanou a cabeça. – Não. – Fez um sorriso.
Em circunstâncias normais eu não tinha feito isto mas, quando ela se ia para desviar, eu mandei-lhe um murro na boca. Via voar e cair contra os bancos e manda-los abaixo, partindo um também. Quando ela se recompôs, observei os danos na sua cara. Tinha sangue na boca e nos lábios, não vi se lhe tinha partido os dentes, mas pouco interessava.
- Eu avisei-te. – Lancei-lhe um olhar de mau agrado e virei costas. Os curiosos aproximaram-se e senti tudo novamente, toda a gente cochichava sobre mim. Estava farta disto.
Senti a brisa secar-me uma lágrima que tinha escorrido e senti cada vez mais a fúria em mim.
- Agarrem esta miúda. – Ouvi comentarem. – Aposto que é tal e qual o pai.
Olhei para de onde as vozes vinham. Pronto, tinha de ser ela, a Mai. Cabra. Comecei a dirigir-me a ela, para lhe bater, mas alguém me agarrou. Comecei a espernear e debater-me, mas não me conseguia soltar.
- Larga-me! – Ordenei. – Larga-me!
- Não queiras lixar mais a tua vida. – Sussurrou-me ao ouvido. Porque raio teria ele me agarrado em vez de ter ajudado a namorada? Arrepiei-me ao ouvir aquela voz. – Vai-te embora.
Eu estava confusa e a namorada dele, a rapariga que eu tivera atingido com um murro, já te tinha levantado e estava a limpar o sangue.
- És uma puta, tal e qual a tua mãe. – Ela voltou a provocar-me.
- Estou calma, larga-me. – Tentei parecer o mais calma possível para ele me largar.
Ele não me conhecia por isso deduziu que eu tivesse mais calma, e que não estivesse a mentir sobre isso. Mal ele me soltou, espetei um pontapé na barriga da rapariga fazendo com que ela voasse para o outro lado do balcão.
- Coitadinha da princesa. – Resmunguei e virei-me para o rapaz. Como é que ele não se preocupava com a namorada? Como era possível?
Ele olhou para mim com má cara e fitou-me. – Não voltes a fazer isso. – Disse-me.
- Se não o quê?
Ela apenas fez um sorriso sombrio e dirigiu-se para ela.
- Farinha do mesmo saco. – Comentei lançando um olhar as pessoas e desapareci nas sombras da noite. Quando me acalmei, senti que ai vinha o pior. Sentei-me perto de uma árvore e encostei-me a ela, sentindo nas minhas costas a casca rija e o musgo frio. E foi ai que desabei, comecei a chorar. Sentia os meus olhos molhados e a minha visão estava turva. O meu pai pensaria que eu estaria morta agora e não a acartar com todas as consequências dos seus atos.
E aquele rapaz? Porque é que não tinha conseguido imaginar a sua morte? Porque raio ele não defendera logo a namorada – se é que ele era namorado dela. -? Porquê? E a Mai, quando a apanhasse sozinha, ela ia ver. Quer dizer, antes de tudo acontecer era minha melhor amiga e prometeu que nunca me deixaria, acontecesse o que acontecesse. Quando aquilo aconteceu, ela afastou-se e quando precisei mais dela, ela não estava lá, como todos os meus amigos. Que eu saiba violência doméstica não é nenhuma doença. Não se pega. Não percebo como me podem criticar tanto por atos que nem fui eu que os tive.

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