Traição
~ Perigo eminente ~
Olhou em volta. Não se recordava muito bem daquele lugar; já há vários anos que não visitava directamente os seus avós. Continuava tudo como sempre fora. O aspecto antigo, mas requintado da sala, as portas de correr, os tatami no chão, a jarra de porcelana antiga com o desenho contornado a ouro de uma flor num pedestal no topo da sala, num espaço próprio para esta, decorada com as famosas glicínias. O cheio inconfundível do incenso a ser queimado, o burburinho de vozes dos criados a passar no corredor que faziam de tudo para não incomodar os patrões. O mordomo deixou-o à vontade na sala, dizendo que os senhores chegariam dentro de poucos momentos e deslizando a porta atrás de si. Yuu sentou-se sobre os seus joelhos, tal como lhe haviam ensinado. Ouviria os seus avós a reclamar se não estivesse adequadamente composto.
A porta na parede em frente deslizou e Yuu baixou-se para cumprimentar os avós. Sabia perfeitamente que eram eles pelo desconfortável sentimento que despertavam em si. Sempre haviam sido demasiado rigorosos, não o deixando aproveitar a sua infância, mas fora graças a eles que nunca lhe faltara nada.
- Espero que tenhas uma boa razão para nos retirares do Conselho sem aviso prévio – declarou o avô, dirigindo-lhe um olhar de desdém enquanto se sentava, visivelmente mal-humorado. – Sabes bem o quão importante é a nossa presença como Conselheiros e a quantidade de burocracia que levantas só para entrares na vila nesta altura.
A sua esposa não se dignou a dirigir a palavra ao neto até se juntar ao seu marido. Deu-lhe então permissão para abandonar o cumprimento e olhar directamente para eles.
Yuu compôs-se novamente, mantendo-se sentado. Tentou olhar os avós nos olhos, mas acabara por revelar-se uma tarefa dolorosa. Acabou então por desistir e fixar o seu olhar na jarra por trás deles enquanto falava.
- Encontrei-me com os Sakuragi em Konohagakure. Parece que encontraram os seus descendentes e representantes – disse. – Tornei-me seu vizinho lá, assim que me mudei para casa dos meus avós maternos.
O senhor já de idade a quem Yuu chamava de avô pareceu ponderar a importância da informação, acenando levemente com a cabeça. Era uma coincidência fabulosa. A sua ordem de expulsão do neto de Kumogakure revelara-se acertada. A sua intenção fora fortalecer o rapaz, obrigá-lo a passar por dificuldades para poder tornar-se mais forte. Mas se isso os poderia ajudar no torneio… Não deixaria escapar aquela oportunidade.
- Yuu, quero que observes atentamente os representantes dos Sakuragi. Pode ser que seja para nosso benefício e finalmente consigamos derrotá-los no torneio. Há algo de novo e imprevisível naquele poder dos descendentes deles. Precisamos de mais informação – ordenou ele. Acrescentou com um tom malicioso: - Faz-te de amigo deles. Eles não sabem quem tu és, estás em segurança.
O rapaz fez novamente uma vénia.
-Sim, senhor – aquiesceu sem questionar.
~~~
A sua cabeça latejava. Sentia-se tonta, com dores por todo o corpo como se tivesse corrido a maratona. Voltou-se na cama. No entanto, sabia que estava a acordar lentamente, que não iria conseguir voltar a dormir. Com a mente mais clara, apercebeu-se do que havia acontecido. Não tinha corrido a maratona, mas algo do género, apenas com outro nome. A raiva por Hikaru começou a invadi-la. Acabara por se sentir mal por ele ter exagerado e estava na cama por culpa dele.
“Belo sensei que arranjei…” – pensou.
Ouviu vozes no corredor, junto da porta do seu quarto. Vozes masculinas. Deixou-se ficar no torpor do momento, no quente conforto da cama enquanto ouvia a conversa.
-… É melhor ir andando antes que ela acorde… - dizia alguém.
- Não queres esperar para esclareceres as coisas com ela? – perguntara outra pessoa. Essa voz já era mais familiar. Identificou-a como sendo de Kazuma.
- Tenho a certeza que sou a última pessoa que ela quer ver neste momento – disse ele. Acrescentou quase num murmúrio: - E por falar em acordar… Acho que ela nos está a ouvir…
Ayame corou. Como é que ele sabia que ela estava acordada? Nem estava em pé! Não valia a pena esconder mais. Acabou por se levantar e reparou que estava em camisa de dormir. Não queria mesmo saber como estava com aquela vestimenta quando tinha a certeza de ter estado vestida umas horas antes.
- Sim, ela acordou mesmo. Falamos depois, Kazuma – disse a voz, no mesmo tom de voz de há momentos atrás.
A rapariga tentou identificá-la. Não tardou muito para que Hikaru aparecesse na sua mente como sendo o detentor de tal voz. De facto, a sua vontade de o ver era inferior a zero, algo que qualquer pessoa lhe diria que era impossível, mas só ela sabia o que sentia. Vestiu-se e, quando saiu do quarto, já ninguém estava próximo. Suspirou de alívio. Voltou a olhar para o interior do quarto, à procura do relógio. Eram 15 horas. Ainda podia aproveitar a luz do dia para fazer alguma coisa útil.
Assim que chegou ao andar de baixo, uma coisa pequena, esbranquiçada e felpuda saltou-lhe para os braços, com uma felicidade desmedida. Kousetsu transmitia-lhe a paz e o conforto que ela tanto precisava. Rapidamente esqueceu a raiva que sentia por Hikaru. Tinha tantas saudades de brincar com aquela bola de pêlo fofa, de falar com as kuchiyoses da sua família. Haru era como uma segunda mãe para si, Gin era algo entre pai e irmão. Já não via Daichi a pavonear-se à sua frente há tanto tempo, Fuu a juntar-se a ele e a começar uma luta pacífica relacionada com os seus enormes orgulhos. Afagou o pêlo de Kousetsu, a raposa mais jovem que se havia juntado a eles há dias atrás, e fez-lhe mimos na barriga. Vê-lo a contorcer-se de alegria encantava-a.
Saiu para o exterior da casa com a pequena raposa nos braços e reparou que os seus pais e Yuriko estavam na estufa. Não sentia a presença do irmão mais velho por perto; já devia ter saído. Estava um dia bonito, apesar da temperatura baixa. No entanto, em nada se parecia com o frio que sentira de manhã, acompanhado pelo orvalho. Resolveu perguntar aos seus pais se precisavam de ajuda com algo.
Kazuma estava em volta de algumas ervas, esmagando algumas com o surikogi e juntando outras, até que adquirissem uma consistência pastosa no suribachi. Quando acabava, colocava uma porção em pequenas caixinhas e fechava-as. Nadeshiko, por outro lado, estava a tratar das plantações. Tinha chegado a altura certa para semear algumas das ervas que necessitavam para a Primavera. Esta olhou para a filha e sorriu.
- Então, querida, já estás melhor? Devias tomar um chá de ginseng e mel, pelo sim, pelo não, o teu corpo ainda deve estar dorido – perguntou ela, confortando a filha com o calor de mãe.
Ayame aquiesceu, sorrindo em retribuição. Kousetsu tocou-lhe com o focinho e imagens de felicidade atravessaram-lhe a mente. Ele também gostara de a ver sorrir.
- Ora, minha pequena bola de pêlo, fá-lo-ei para ti sempre que queiras então! – prometeu ela.
A raposa fez um pequeno gesto de embaraço e saltou do seu colo, dirigindo-se para a sala dos fundos aos saltinhos. Haru devia estar lá com Yuriko.
Assim que teve oportunidade, perguntou aos pais:
- Precisam de alguma coisa?
Nadeshiko respondeu de imediato que não era necessário, a não ser que ela quisesse tratar do lanche dentro de umas horas. Seishirou continuava concentrado no que fazia, mas conseguiu responder-lhe enquanto esmagava uma nova porção de ervas.
- Podes ir à florista buscar os dentes de leão, por favor? – pediu.
- Aos Yamanaka?
- Sim, já falei com eles sobre isso. Já que eles não podem aproveitar essas ervas para a loja, nós aproveitamos. Os jardins deles ficam infestados disso e assim até ganham algum – explicou ele, num tom de brincadeira. – Não te preocupes, eu trato do pagamento mais tarde.
Ayame anuiu e disse que já voltava com as ervas. A loja de flores dos Yamanaka ficava na mesma rua, embora no exacto oposto em relação à estufa dos Midori. Devia ser uma tarefa simples de concretizar, nem precisava de ir a correr.
Konoha estava cheia de vida. A rua perto do mercado, junto da entrada da vila, estava especialmente concorrida. Enquanto observava despreocupadamente o frenesim de pessoas, reparou numa face conhecida a aproximar-se. Era Yuu, o seu ainda recente vizinho. Acenou-lhe e este reparou nela, sorrindo. Acelerou o passo para chegar perto dela.
- Olá! – cumprimentou ele.
Ela sorriu e respondeu-lhe. Apercebeu-se que ele devia estar a chegar à vila. Perguntou-se o que ele teria ido fazer, mas não questionou o rapaz. Podia ter sido apenas uma missão. Pela cicatriz, até diria que ele seria um ninja já bem mais avançado que ela.
- Então, melhoraste muito desde que me ausentei? – inquiriu ele em tom de brincadeira.
- Não sei, duvido muito – retorquiu ela, com um sorriso. Então ele sempre se ausentara. Mas não ia ser bisbilhoteira. Estava satisfeita assim.
Yuu encarou-a, com curiosidade a pairar no seu olhar. Curiosidade e desafio. Ia cumprir as ordens do seu avô e tornar-se amigo da rapariga dos Sakuragi. Ia saber tudo sobre ela para a esmagar como um insecto no torneio.
- Precisas de ajuda?
- Oh – exclamou ela. Acrescentou, divertida: – Não me importo de companhia nos treinos. Espero que não te importes que tenha um chato a observar e a mandar como se fosse o rei da zona.
Ele ficou confuso e esperou que ela explicasse. Era o seu novo sensei, que, pelos vistos, ela odiara, mas acabara por tolerar por saber que ele era bastante bom. Talvez ele se tornasse um empecilho para atingir os seus objectivos. Tinha que averiguar pessoalmente. Acabaram por combinar fazer treinos juntos num dia próximo, assim que algum deles fosse treinar. Ayame começara a ficar ligeiramente agitada. Parecia com pressa; era melhor deixá-la ir à sua vida. Já tinha conseguido o que queria.
- Notas da autora:
Finalmente arranjei um novo rumo para a história. Sim, tinha-o perdido. Ou melhor, esquecido
Só me lembrava de uma das minhas ideias e pronto... Agora tenho grande parte da história delineada. Ando a controlar-me para não enfiar tudo de uma vez. Estou mesmo entusiasmada
Oh well, espero que gostem! ^^