- Senhor, permite-me uma pergunta?

Uma voz franzina e masculina fez-se ouvir no tenebroso silêncio da sala do Mizukage. A voz provinha do conselheiro do líder, baixo e bastante magro, ostentando um manto verde que lhe cobria todo o corpo, protegendo-o do frio e de ser identificado por outros. Okashii, sentado despreocupadamente na sua cadeira, atrás de curtas pilhas de papéis, assentiu com a cabeça, mantendo os olhos fechados como se meditasse.

- Porque não ordenou uma busca mais complexa, com homens mais capazes? - Os dedos das mãos do conselheiro mexiam-se nervosamente, pressionando-se uns aos outros - O experimento possui células de Futton e Suika a correr-lhe no corpo, será uma questão de tempo até ele perceber os poderes e escapar com ainda mais facilidade…

O líder não respondeu de imediato, suspirando pelo nariz e não esboçando reação. O silêncio na sala pareceu ao conselheiro ainda mais sinistro, unicamente interrompido pelo irritante tique-taque do relógio de parede, situado ao lado da janela, que o levou a mexer com os dedos ainda mais nervosamente.

- Sê sincero, leal súbdito… - Okashii abriu os olhos calmamente, fitando o franzino com autoridade - Onde achas que o Uchiha ganhou o Futton?

Não respondeu de imediato e o Mizukage voltou a fechar os olhos, consciente que não havia resposta.

- Não gosto que outros além de Kirigakure tenham em posse tal habilidade. Futton é raro entre os nossos membros, compensando com o seu alto poder destrutivo. Preciso do experimento solto, para que ele me leve a quem tem as células. - Explicou o líder sucintamente.

- Mas… - O conselheiro calculou as suas palavras - O Futton começou a corroê-lo por dentr-

- É verdade! - O líder interrompeu-o, levantando-se da sua cadeira e olhando para lá da janela, sem nunca olhar para o conselheiro - A operação deve ter sido feita por amadores ou então o corpo não aceitou corretamente a inserção… Se não fosse a operação para o Suika, o seu corpo viraria cinzas, ou então uma mistela repugnante…

Encostado contra uma parede, oculto pela sombra da habitação e pela escuridão da noite, olhei para dois homens bêbados a caminharem aos ziguezagues pela rua, colidindo incontavelmente com qualquer obstáculo que se pusesse à frente. O triste cenário não merecia a minha atenção, esta que se centrou numa sombra, em cima de um poste de luz, que vigiava todo o seu redor. 

Até agora havia visto três sombras, iguais à que se pendurava no poste como uma gárgula de pedra. A patrulha de Kirigakure, pequena e demasiado fraca para sequer me impedir, revelava que Okashii não estava preocupado com a minha fuga, o que me levava a pensar no porquê enquanto não conseguia sair do meu esconderijo. 

Momentos atrás, aquando eu acordei e me vi rodeado por médicos, reconheci que eles tinham feito algo com o meu corpo, o que justificou a ausência daquelas náuseas ou constantes dores e pelos membros já não se encontrarem mais doridos nem avermelhados. Senti também que algo novo invadiu o meu corpo e o modificou, tornando a minha carne em algo diferente e os meus ossos mais… Não sei bem como expressar… Líquidos… 

- O alvo chama-se Tsutao Uchiha e tem este aspeto! - Um sentinela surgiu de nenhures, parando os dois bêbados e apresentando um cartaz com a minha cara, porém mais jovem e com o cabelo muito mais curto. Os dois bêbados soltaram gargalhadas loucas, mediante alguns arrotos, e ignoraram totalmente o sentinela, continuando o seu andar desnorteado - A esta hora só há bêbados!

Desapareceu numa nuvem de fumo o que me permitiu respirar de alívio. Olhei para cima e vi que a sombra do poste também desapareceu. Provavelmente o grupo declarou que não me encontrava naquela área, decidindo revistar outra. Assim, esgueirei-me e olhei para o beco sem iluminação à minha direita, totalmente desprovido de alma viva. Examinei uma última vez para a área a meu redor, só para ter a confirmação que me encontrava seguro, e adentrei na rua estreita.

A névoa naquela vila começou a mostrar-se irritante. Não percebi como é que os habitantes conseguiam conviver com este clima frio e arrepiante. Como seria um dia-a-dia onde a nossa presença se encontrava sempre coberta por névoa? Como é que eles conseguiam conviver com tal coisa? Não bastou a escuridão da noite, mas a porcaria da névoa também adensou, diminuindo ainda mais a minha já fraca visão e levando-me a dar pontapés em caixas, caixotes de lixo e muitos outros obstáculos espalhados que não conseguia distinguir só pelas formas. Soltei um grunhido quando os meus pés descalços embateram violentamente contra um metal frio e um som de algo a abrir, acompanhado por um cheiro nauseabundo, ecoou.

- Mas que… - Agachei-me e apalpei os dedos dos pés, vermelhos por tantas colisões, enquanto a outra mão palmeou o objeto metálico à minha frente, caracterizando-se como algo redondo e plano, porém extremamente pesado - Uma tampa… Do esgoto?

Fiz uma cara de repugnância quando tive a ideia de me camuflar dentro das canalizações da vila. Bem, era verdade que seria o melhor esconderijo para mim e que, sem justa causa, a água, apesar de nojenta e peganhosa, me atraía fortemente. Nem pensei nos pontos negativos do novo caminho, limitando-me a cheirar o menos possível e entrar no orifício…

As primeiras impressões aquando a minha entrada foram o já esperado mau cheiro e as indesejadas imagens de substâncias pegajosas a escorrerem por canos ou tubos enferrujados e objetos, agora mais inúteis que úteis, espalhados pelas bermas, estas separadas por um largo rio lamacento; o qual dificilmente irei por os meus pés. Os túneis eram fracamente iluminados por algumas tochas, das quais eu me perguntava como se mantinham acesas, que se estendiam por todos os lados. Todavia, a repugnância e desconforto não abafaram o ecoante som de choro e murmúrios tristes. O chorar era constante e bem audível contrastando com os sussurros que identificavam a voz como feminina e infantil, mesmo sendo muito baixos e incoerentes.

Deixei-me guiar pela tristeza que emanava pelos corredores, tentando abstrair-me do mau cheiro e de toda a porcaria à minha volta. Após pequenos saltos, curtas e rápidas passadas e alguns cuidados, encontrei-me com a pequena figura encostada à parede e abraçada aos joelhos, com a cara afagada nos mesmos deixando lágrimas a verterem pelas pernas.

Perguntei-me de imediato o que uma criança estaria a fazer num local como aqueles e a chorar tão descontroladamente. O meu coração sensibilizou-se e não demorou muito a que eu ficasse com pena da criatura. Não pude evitar, agachei-me e apertei o braço dela com carinho.

- Ah… Está tudo bem, pequena? - Este era o lado que os Imagawa me haviam tão bem ensinado, o lado ternurento e paternal, incapaz de ignorar uma criança a chorar.

A pequena só agora notou a minha presença, tão distraída a chorar que nem ouvira os meus passos. Afastou a cabeça dos joelhos e com a ajuda das mãos limpou as lágrimas, encarando-me. As suas órbitas amarelas revelaram uma descomunal inocência infantil, mas também tristeza e intensa solidão. O braço que lhe apertava encontrava-se frio e demasiado magro, pois já sentia o osso. 

Repeti a pergunta, olhando agora para os seus cabelos algo grisalhos, provavelmente sujos. 

- Sim… Sim, estou bem… - Mentiu descaradamente levando-me a suspirar - E-está a… Está a magoar-me!

Soltei de imediato o seu braço, alarmado e preocupado.

- Desculpa, desculpa! - Fitei os seus olhos lacrimosos e a sua cara coberta de nódoas, onde já nem dava para distinguir a pele - O que é que estás aqui a fazer, pequena?

Ela não me respondeu de imediato, enxugando os olhos e limpando as gotas de água do nariz com os braços, sem nunca parar de olhar para mim. 

- Estou… à espera…

- Do quê?

- Que me venham buscar… A minha mãe disse-me que… Que uns homens maus queriam-me e que… Escondeu-me aqui para não me encontrarem… - Custou-lhe a falar devido aos soluços e às lágrimas que conseguiram escapar à prisão emocional que ela tentou criar. 

Homens maus? Desconfiei logo da história, mas sabia do que se tratava. Aconteceu o mesmo com Takumi… Foi abandonado pelos pais… Isso deixou-o tão transtornado que acabou por virar ladrão e cometer delitos em muitos lugares. Mas esta rapariga… Como é que ainda acredita que a mãe a vem buscar? E há quanto tempo estaria ali, à espera?

- Há quanto tempo estás aqui? - Perguntei, cada vez mais emocionado pelo choro dela e pelas recentes memórias que tão abertamente partilhara.

- Não… Não sei…

Não podia deixá-la ali a apodrecer no esgoto até também ser levada com o resto da porcaria dos canais. Não podia ser o destino de uma criança tão adorável e linda… Não o conseguia permitir…

- Pequena, ainda achas que a tua mãe virá te buscar? - Tive de o perguntar…

- Ela… Ela não vem mais… - Impressionei-me com a resposta! - Eu sei que ela não vem! - Era por isso que ela chorava….

Um costume dos Imagawa`s era adotar os abandonados e convertê-los para o clã. Foi assim que eu, Takumi e muitos outros nos juntamos à nossa família… Era assim que funcionaria para a pequena.

- Queres vir comigo?

- Para onde? - Perguntou naquela sua voz infantil irresistível, que me encantava o lado sensível. Estou a virar gay…

- Para fora destes esgotos e desta vila. A tua mãe não aguentou, mas eu aguento assumir a responsabilidade por ti. És demasiado nova para passares por isto… - Agarrei-a pela mão e levantei-me, colocando-a às costas - Não queres conhecer o mundo lá fora, ver a neve, as flores e muitas outras coisas que só a Natureza nos dá?

A rapariga não respondeu, mas pelo menos parou de chorar, afagando a cabeça no meu pescoço. Demonstrou carinho por mim, se calhar por estar algo carente, e abraçou-se fortemente ao meu peito, para poder equilibrar-se enquanto pendurada às minhas costas. 

Sorri-lhe de soslaio e incitei-me de imediato para a saída. Depressa nos fomos encontrar com um tubo grande que desaguava para um rio. Apesar da localidade estar coberta por névoa, sabia que já havíamos deixado o território de Kirigakure…