Afazeres
~ Acompanhante para treinos ~
-… chan…
Ayame sentiu a sua consciência dormente a apoderar-se do seu corpo, abandonando o doce torpor de uma noite bem dormida. Não queria acordar, estava tão bem assim. Pressionou as pálpebras para se deixar invadir pela escuridão e pelo seu encanto.
- Ela não acorda… - queixou-se uma voz de criança, próximo de si.
Ouviu-se um suave raspar do tatami e a jovem sentiu peso nos cobertores, que não tardou a mover-se para junto dos seus ombros, onde parou. Parecia estar tudo calmo novamente. Uma lambidela cheia de sentimentos de dúvida despertou-a de repente. Sentada na cama, reparou em Kousetsu, a pequena raposa de pelagem esbranquiçada, que a observava com um ar de satisfação. Yuriko também se encontrava por perto e um sorriso começava a desenhar-se no seu rosto. Ayame não conseguiu resistir à ternura infantil daquele sorriso e juntou-se a esta.
- Bom dia, minha pequena flor – cumprimentou.
- Bom dia, nee-chan.
A voz da menina era como uma lufada de ar fresco, comparável à voz dos anjos. Era impossível não adorar ser abordada por ela.
- A mamã chamou para a mesa – continuou Yuriko, colocando as mãos atrás das costas como que a esconder o seu embaraço.
Ayame passou a mão pelo cabelo castanho caramelo da irmã, ainda com um sorriso na cara:
- Já desço, querida.
A Midori mais nova assentiu com a cabeça e correu para a porta, sendo seguida pela pequena raposa. Assim que Yuriko deslizou a porta, Kousetsu saiu educadamente por esta e esperou-a no exterior, como um verdadeiro cavalheiro. Ayame deleitou-se com a cena. Estava orgulhosa dos membros mais novos da família.
Levantou-se da cama, refrescou-se e vestiu-se antes que a mãe a mandasse chamar uma segunda vez. Não era boa ideia atrasar-se mais, caso contrário, bem sabia que lhe esperava a fúria da mãe, que sempre fizera questão de passar as refeições em família. Também não era usual acordar depois de Yuriko. Devia estar mesmo cansada.
A refeição passou-se calma e rapidamente. Kazuma ficara de fazer um favor a Ren e iria ao hospital, onde este estaria de serviço. Era habitual este fazer o turno da manhã. Nadeshiko, a mãe, tinha que tratar da sua última plantação, que parecia estar a sofrer com as diferenças climatéricas drásticas entre a noite e o dia. Seishirou, o pai, iria passar o dia em volta das kuchiyoses, que tinham entrado na época da muda do pêlo e precisavam de ser escovadas e tratadas. Quem não tinha o que fazer era Ayame. Sabia que tinha que se auto-motivar para treinar se não queria ficar eternamente gennin. Mas, na verdade, não estava com grande vontade de ir treinar.
A família não tardou a sair para iniciar os seus afazeres. Yuriko e Kousetsu ficaram na sala a brincar, junto dos sofás, procurando ter o cuidado de não tocar na mesa de café. Ayame manteve-se sentada à mesa, a observar a irmã. Revirou os olhos e olhou pela janela, inadvertidamente. Acabou por se lembrar de Yuu, que vira a passar no pátio dos seus vizinhos naquele preciso momento. Talvez ele fosse uma boa ajuda para o treino. Saltou do banco alto de madeira e empurrou-o para baixo da mesa da cozinha. Saiu pela porta das traseiras, que ficava no fundo da cozinha.
Yuu já não se encontrava no exterior. Já devia ter entrado. Enquanto Ayame ponderava se ia ou não bater à porta para falar com o rapaz, uma janela abriu-se. O barulho despertou-a da sua divagação. Pelos vistos, não ia precisar de se deslocar a casa dos vizinhos.
- Bom dia, Ayame – cumprimentou ele, algo divertido.
- Bom dia! – respondeu ela com um sorriso. – Estava mesmo aqui a pensar em ti. Vi-te a passar há pouco e pronto.
A expressão de Yuu mudou ligeiramente, passando a algo mais sério e curioso. Estava a ser demasiado expressivo. Devia ter cuidado com isso. Acabou por perguntar:
- Ah sim? Aconteceu alguma coisa?
Ela negou rapidamente, dizendo que estava tudo bem, e perguntou-lhe se o convite para treinarem juntos ainda estava de pé, se ele não estivesse ocupado. Yuu olhou para o interior da casa por um momento. Não estava à espera que ela mesmo fizesse o convite. Porque não aceitar?
- Encontramo-nos na rua daqui a 5 minutos, ok? É só para buscar as minhas coisas – disse ele, voltando a olhar para a rapariga.
A rapariga anuiu, sorrindo. A presença do ainda recente vizinho seria motivação suficiente para treinar com gosto. Voltou para o interior da casa para colocar o seu equipamento e buscar a sua katana, que colocou às costas. Despediu-se da irmã com um beijo na testa e dirigiu-se para a rua. Yuu não se encontrava lá. No entanto, não tardou para que chegasse. Tinha um colete típico de ninja, embora em tons de azul, o que confundiu Ayame. Estava habituada ao verde, ao preto e ao cinza, as cores de camuflagem. Provavelmente seria uma opção do rapaz e não algo que representasse o seu rank ninja. Ele trazia também uma bolsa na perna direita que aparentava estar cheia de equipamentos. Vinha bem preparado para o treino.
Yuu reparou que Ayame o observava cuidadosamente. Perguntava-se o que ela estaria a pensar. Estava com dúvidas quanto ao treino? Será que estava com receio? A única justificação plausível para ela ter dúvidas era se visse uma grande diferença de poder entre eles. E, pensando nisso, questionou-se acerca do rank dela. Esperou que estivessem a caminho do campo de treinos para perguntar.
Encontraram Mirai, a namorada de Kazuma, o irmão mais velho de Ayame, a acabar de reparar os alvos dos campos de treino. Ayame sorriu e aproximou-se dela, cumprimentando-a. Apresentou-a a Yuu, que, amavelmente, retribuiu o cumprimento. Embora gostassem de ficar a conversar, Mirai estava a trabalhar e ainda tinha alguns campos para visitar antes que chegassem mais ninjas para treinar.
- Se precisarem de alguma coisa, digam – disponibilizou-se ela, afastando-se. Ficara desconfiada daquele rapaz. Nunca o tinha visto. Analisou de longe a sua vestimenta, na esperança que esta revelasse algo sobre si, mas nada lhe disse. Mas era visivelmente mais forte que uma simples gennin. Talvez fosse melhor avisar Kazuma. Se bem se recordava, ele deveria estar no hospital naquele momento. Iria lá rápido.