Numa noite de céu sem nuvens, as estrelas brilhavam sob um extenso litoral da costa paradisíaca. O mar calmo banhava a fina camada de areia branca, fazendo refletir a luz da lua cheia nos minúsculos seixos misturados entre conchas e poucas algas. Sentados numa colcha simples, duas sombras apreciavam a beleza da região e conversavam sobre a estranha manobra do destino que os fizeram se encontrar naquele fim de mundo. Mesmo sem saber interpretar direito o que sentia, o loiro só tinha a certeza de que se sentia muito bem na companhia daquela garota. Alegre, decidida e companheira, pela primeira vez encontrara uma pessoa cuja voz conseguia acalmar sua ânsia por violência. -
Você acalma o monstro que há em mim. - Sussurrou à Yuka, meio envergonhado e ansioso para saber como ela reagiria ao seu comentário. A garota corou através do véu que protegia seu rosto, deixando seus olhos marejados. Essas duas semanas haviam sido bastante agradáveis e em suas conversas era a primeira vez em que ele dava vazão aos sentimentos. Acenando com a cabeça para mostrar seu agrado pelas palavras, Yuka estendeu a mão e tocou no rosto de Daisuke numa leve carícia. Aquilo fez o loiro gelar, suspirando fundo para resistir seu instinto primitivo de agarrá-la e beijá-la. "Ela merece respeito." - Pensou ao fitar suas vestes de noviça, envergonhado por ter sequer pensado nisso. Nesse momento um silêncio constrangedor se fez, deixando apenas o ruído do mar atravessar a tensão entre os dois. -
Deixe-me cantar para você. - Disse, com alegria na voz.
"Sun Wukong nasceu num longínquo reino peludo /
E por seu respeito deram-lhe o governar /
Mas de que adianta ter poder e riquezas /
Se a vida é tão curta para aproveitar? /
A imortalidade então procurou em tudo /
Encontrando, sob o pé tirano /
Para envergonhado estar /
Indignado com infortúnio /
Roubou-lhe aquele fruto /
Que prometera alcançar."
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Gosto quando você canta. - Elogiou o rapaz, tentando apreciar o momento.
-
Assim você me deixa envergonhada. - Sorria, escondendo o rosto.
-
Yuka... Amanhã... - Entristeceu-se ao tentar escolher as palavras.
A garota ficou em silêncio por alguns momentos e esperou o que Daisuke tinha a dizer, suspirando profundamente como se esperasse más notícias. -
Amanhã partirei. Não sei quando posso retornar. - Resolveu confessar de uma vez, olhando-a nos olhos a espera de algum conforto para a saudade que sentirá daquela moça. Inclinando a cabeça ligeiramente para o lado, Yuka contraiu suas bochechas, afilando os olhos castanhos por trás daquela pele rosada. Sem responder, ela se levantou e se esticou para começar a limpar a areia que insistia em acumular nas suas longas vestes. Daisuke a acompanhou, já olhando para a posição dos astros e saber que já estava na hora de retornar à Horan. Yuka pegou-o pela mão e os dois desceram a pequena elevação até chegarem ao pequeno barco que o loiro navegara por essas duas semanas para conversar. Segurando a emoção que sentia da partida, o ninja buscou a pedra que usava como âncora improvisada e a jogou dentro da embarcação que balançou suavemente com as ondas, agora liberto para navegar. O rapaz olhou para a moça por alguns instantes e apertou sua mão num cumprimento respeitoso ao se inclinar na direção dela. -
Boa sorte. - Disse Yuka, sussurrando em seu ouvido, num tom saudoso ao despedir-se do até então amigo, quando se adiantou fingindo cair nos seus fortes braços. Daisuke tomou um susto e seus olhos mais uma vez se encontraram. Foi um movimento natural. Os lábios procuraram o que o coração desejava. Os dois enfim se tocaram suavemente e um calor enorme invadiu os corpos.
O tempo pareceu parar por alguns segundos, voltando a correr quando os lábios se separaram, indicando que já era hora de ir. Yuka desviou os olhos e suspirou, com vergonha do que havia feito. Buscando seu rosto, ele a acariciou e confortou com esse gesto, acenando positivamente para indicar que estava tudo bem. A garota então deu um passo para trás e aguardou que a embarcação ganhasse as ondas tranquilas e sumisse na escuridão. A noviça esperou por mais alguns momentos, pensando no que havia feito e em quanto gostava daquele pirata maluco que aparecia todas as noites. Yuka, a princípio, achava que seus conselhos o ajudariam a deixar essa vida à margem da lei, contudo, com o passar das noites, agora era ela que duvidava da escolha que havia feito em seguir os votos religiosos. Uma provação, talvez. Uma loucura? Certamente. Ela tinha medo das consequências daquele beijo, para ela e para as crianças órfãs que dependiam dela, já que a sacerdotisa já planejava se aposentar, treinando-a para deixá-la em seu lugar. Tantas dúvidas. Assim, quando não mais ouviu o chacoalhar da balsa a favor do vento, ela se virou e subiu a duna vagarosamente até vislumbrar o vilarejo e o orfanato. -
Que Sun Wukong nos proteja. - Concluiu assim que deu os primeiros passos cuidadosos para não escorregar na areia fina. Aproximando-se pelos fundos, Yuka recolheu o restante das roupas que lavara para então entrar na área do dormitório onde as quinze crianças dormiam silenciosamente.
Duas horas depois...
O sol já amanhecia na Vila secreta de Horan, onde o vento gelado descia pela encosta num zunido que o loiro já se acostumara. Atravessando a passagem cavernosa aos remos, Daisuke ainda suspirava com o que acabara de acontecer. Ele pensava naquela bela noviça que acabara de arriscar sua túnica ao beijá-lo. Ele não entendia muito bem como funcionava aquela religião estranha que adorava o Rei Macaco. Mas isso não lhe interessava. O que conseguia pensar naquele momento era sobre aquele beijo. -
Parece que alguém conseguiu... - Sussurrava com um sorriso no rosto ao perceber que talvez estivesse apaixonado, ou pior, estivesse amando. Distraído com conjecturas, Daisuke nem percebeu que o barco acabara de bater forte na madeira do porto, acordando o vigia que subornava todas as noites. O homem fez uma careta ao vê-lo novamente e agarrou a corda que o loiro jogara e assim puxou a embarcação até conseguir amarrá-la na viga de sustentação. Ainda nas nuvens, ele saltou do barco e entregou mais uma moeda ao vigia, passando por ele ainda com um grande sorriso no rosto. Tudo era música. Tanto que começara assoviar uma das melodias piratas que aprendera enquanto subia as passarelas até o alojamento onde a tripulação descansava até que os reparos fossem concluídos. Foi quando, ao terminar de subir a última passarela, Hiroshi se surpreendeu ao ver seu discípulo com olhos fixos e injetados de sono. Acenando a cabeça, ele inclinou a sobrancelha com impaciência.
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Onde meu sensei estava numa hora dessas? - Perguntou Lian, sentado a frente de seu alojamento.
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Não é da sua conta. Vá dormir. Começaremos daqui a pouco. - Respondeu rigidamente.
Fazendo uma careta, Lian se levantou e entrou no alojamento segurando uma pequena caixa de madeira. Daisuke percebeu aquele detalhe, mas como havia sido ríspido com a curiosidade do discípulo, preferiu não lhe dar a ousadia para uma resposta à altura. -
Até logo. - Sussurrou o garoto, guardando a pequena caixa dentro de seu baú, trancando-o com um grande cadeado cuja chave prendeu no pescoço. O loiro não se importou mais com aquilo, afinal, estava muito feliz por ter tocado naqueles lábios suaves e - esperava - virgens. Apesar disso, sabia que o Yukikaze finalmente estava pronto para ganhar os mares. Novos saques viriam, e como havia se incomodado com a covardia, resolveu adiantar o treinamento para que o filho do patrão fosse capaz de se defender. Ele iria sofrer, mas quando menos ele ficasse na presença dos piratas, melhor. Assim, retirando a blusa, Hiroshi se deitou na rede reservada e cruzou os braços sob a cabeça para fitar o telhado, onde conseguia ler os inúmeros rabiscos indecentes que os inquilinos anteriores desenharam em outras oportunidades. Coisa nada elegante, mas não deixava de ser engraçado. Suspirando aliviado, tentando relaxar, ele finalmente pregou os olhos e limpou a mente numa breve meditação até que caiu num sono pesado por algumas poucas horas quando o imediato começou a gritar: -
Muito bem, seus macacos! Hora de voltar aos mares! - Comemorou alto, acordando a tripulação que de tão animada, começou a cantar. Agora era hora de partir.
CONTINUA...