- Citação :
"Nasceu em berço de ouro em terras distantes. Desceu ao inferno e ressurgiu de relance.
Nas suas andanças encontrou a luta. E da luta encontrou o mar. No mar navegou até seu coração.
Mas, atraindo da corja a despeita. Sua morte só será desfeita. Se seguires a razão."
Acordei de um pesadelo esperando que tudo o que aconteceu não passasse de um sonho ruim. Mas a quem eu tentava enganar. Estava sozinho, no escuro. Apesar de conseguir sentir o já conhecido balanço do mar, meus braços e pernas não me respondiam. Eu estava preso em meu próprio corpo e queria gritar, espernear. Nada acontecia. Ruídos de gargalhadas do lado de fora. Conseguia ouvir. Conseguia ver. Mas na escuridão, minha alma sangrava pela traição. Como não percebi? Como deixei que meu sentimento pela noviça me deixasse tão desatento. Já era tarde demais para se arrepender. Precisava escapar, pois sabia que nada de bom o aguardava de volta a sua casa em Suna. Julgamento, talvez. Pena de morte, certamente. Eu me lembrava de tudo de errado que fiz. De tudo aquilo que me trouxe até aqui e por fim, lembro-me com desgosto do sorriso sarcástico daquele rapaz que um dia foi meu aprendiz. Desgraçado. Maldito. Peço aos deuses que me deem mais uma oportunidade de retornar e acabar com a raça daquele fedelho e da corja pirata que me vendeu. Um objeto que não se precisa. Um pária sem função. Argh! O veneno ainda circulava pelo meu corpo, arrancando de mim qualquer promessa de movimento. Mas eu sei. Meu corpo tremia. Eu sei. Já passara da hora de minha dose. Meu vício. Apesar de paralisado, meu cérebro ainda suplicava pela substância. Sem ela eu sou um fraco. Sem ela não sou ninguém. Droga... Meus olhos ardem. Essa luz.
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Veja só Oburu. O rapaz está babando! - Brincou o homem, abrindo o alçapão.
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Dê-lhe água. Queremos ele vivo. - Respondeu outro, apontando para o balde.
O maldito desceu os poucos degraus segurando a vasilha com água. Abrindo minha boca, eu não consigo oferecer resistência. Até me engasgo com o excesso do líquido, mas não tenho espasmos. Uma agonia a cada gole. Estava sem expressão. Apenas olhava para o vazio quando a dor novamente começou. O maldito apertou o ferimento em sua coxa esperando que eu gritasse. Não pude. Meu corpo gritava por dentro. A dor me invadia e com ela a escuridão retornava quando o homem voltou a fechar o alçapão. Entrei em desespero. Precisava melhorar. Precisava daquela substância novamente. Já não podia fazer nada. A angústia. O desespero. Tudo num sentimento só. Estava sozinho. Sentia frio. O barco balançava e por fim senti uma abrupta parada e meu corpo rolou para o canto onde senti o cheiro de minha urina. Com rosto encostado no casco do barco, a luz novamente entrou dolorosamente por meus olhos. Senti meu corpo ser agarrado e arrastado por alguns degraus. Minha perna doía muito. Naturalmente fui inclinado para que pudesse sentar. Vi minha coxa ferida. Um líquido negro vazava de dentro da ferida. Parecia que perderia a perna se não recebesse tratamento. Mais uma vez me desespero. Seria um inválido para o resto da vida. Não. Estaria morto antes disso. Apesar de não entender nada sobre a justiça ninja, eu sabia que a pena por matar um professor não deve ser leve. Um inválido. A raiva. A dor. A vingança. A droga. Tudo junto.
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Leve-o para lá. - Comandou um deles, apontando para um navio.
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Certo. Mas e o dinheiro? - Perguntou o outro.
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Já está tudo arranjado. Será entregue. - Terminou.
Meus olhos fitam o bote em que viajei. Vi o rosto daqueles homens. Nunca mais vos esqueço. Nunca vou esquecer nenhum deles. Só peço mais uma oportunidade para voltar a me movimentar. Mais uma e vou caçá-los até o último dos oceanos! Malditos! Sinto meu corpo ser jogado sob os ombros do outro que passo a passo se aproximava de uma embarcação ancorada naquela pequena ilha tropical. Coqueiros, pássaros, areia branca. Tudo passava por mim até que ouvi uma voz que se aproximava. -
Muito bem. É ele mesmo? - Perguntou o estranho, puxando em meu cabelo para compará-lo a um cartaz. O sujeito olhou nos meus olhos e acenou. Mais um para me vingar. Mais um que me carregou para dentro e me jogou novamente na escuridão de outro porão. Ainda pude ouvir o levantar da âncora e o som reconhecível das velas ao vendo. O navio zarpou. Mas para onde? Para onde irei? Quem eram eles? A possibilidade de não mais estar no controle da situação era desesperador. Precisava se mover. Um esforço desnecessário. Não consigo. Sem a substância eu não consigo. Meu corpo rola de um lado a outro. Sinto a coxa magoar ao se chocar repetidamente contra a viga lateral. Não consigo dormir. Acho que vou enlouquecer. Enlouquecer. Enlouquecer. Espere... Um som. Um guincho. Sinto uma mordida em minha ferida. Antes sonolento, agora estou queimando em dor. Mais uma vez o barco balança e mais um guincho. Sinto que atropelo algo peludo. Rato. Um rato está me comendo vivo?!
Pelos deuses, não. Tire-o de cima de mim. Tire-o de cima de mim! Meu corpo não se move. Não sei mais o que é realidade ou imaginação pela minha mente em abstinência. O tempo passa. Está tudo escuro. Não sei que horas são. Lembro-me de ter perdido a consciência. O rato... Era real? Não o escuto mais. Ainda sinto o balanço do mar. Afinal, quanto tempo de viagem? Acho que vou enlouquecer. "Sua morte só será desfeita. Se seguires a razão." - Lembro-me da cigana. Não sei dizer se era isso mesmo que aquela bruxa queria dizer. Não sabia de mais nada. Meu corpo estava morto, e minha mente parecia ir pelo mesmo caminho. Eu tenho que suportar. Suportar a dor. A fome. O desejo. O desespero. Estou preso em meu corpo. Eu sou minha prisão. Água. Estou com sede. Ninguém vem me socorrer. O cheiro do porão está insuportável. Fezes e urina. Estou banhado em sujeira. Há quanto tempo estou naquele lugar? Estou machucado. Minha alma está machucada. Penso em Yuka. Em seus olhos. Mas não há tempo. Já era tarde. Acabo por me despedir. Estou pronto para morrer. Melhor assim. Afinal, acho que até cheguei longe nessa vida. Foi divertido... Heeerijjnffffffen... Minha lógica falha. Meus olhos reviram. Estou convulsionando. Não posso tremer. Penitência maldita. Deixe-me morrer, por favor. Nesse momento a luz invade meus olhos mais uma vez. Vejo outro rosto desconhecido a me arrastar para fora e me jogar numa espécie de banheira.
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Vamos te aprontar para lhe receberem. Estamos quase chegando. - Sussurrou a mulher.
Estou nu. Meus olhos correm pelo ambiente e percebo que já estou num litoral. Areia amarela com uma floresta densa ao fundo. Onde poderia estar? Água. Meu corpo afunda e a mulher me lava. Vejo o líquido ficar escuro com minha sujeira. Escovão e sabão. Minhas costas sendo lavadas. Um alívio após tanto tempo de sofrimento. Vejo meus ossos no meu corpo magro. Estou decrépito, pálido. A mulher sorria e me jogava de um lado a outro pela banheira até que me puxou de volta. Fui aparado por alguns homens e colocado numa espécie de maca. Recebo roupas limpas e a senhora completa a sessão retirando meus piolhos. 'Sou um farrapo humano. Apenas a sombra do que já fui.' - Lembrava desse trecho num texto que lera na academia. Pela paisagem eu tinha certeza de que não estava no País dos Ventos. Onde estou? Onde está Yuka? Minha consciência fraqueja e sou acordado novamente pela dor. Outro homem começava a limpar meu ferimento. Linha, agulha e faca. Senti um pedaço meu a ser cortado e costurado. Um curativo para evitar mais infecção. Uma pomada. Vejo a gaze ganhar um leve tom de vermelho. Sinto meu corpo limpo e alinhado. Estou pronto para partir novamente. Ouço gritos de boas-vindas. Meus olhos fitam o espaço celeste sem nuvens. Sinto movimento e ouço os sons de várias passadas e cavalos. Fecho meus olhos exaustos e tento descansar. O movimento da carroça pela trilha me fez acordar. Outra mulher me segurava no colo, dando-me o que beber. Remédio amargo. Vejo por cima da beirada da carroça um imenso casarão.
"CENTRO DE TRATAMENTO MENTAL OSAKANO" - Dizia a placa que se aproximava.
CONTINUA...