A verdade ao microscópio

O ambiente no laboratório era demasiado desconfortável para o seu gosto. Katsu não sabia o que era melhor: os ruídos estranhos sem aparente origem ou o completo silêncio que os seguia. Caminhou para o centro da nova sala, sempre rodeado pelas quatro caveiras demoníacas, evitando pisar ou tropeçar em qualquer osso que passava. Um cheiro fétido pairava no ar, muito mais intenso do que ele cheirara anteriormente, não estando estranhamente acompanhado pelo irritante zumbir das moscas. Quando uma das lanternas iluminaram uma carcaça decomposta cujos ossos estavam completamente limpos, sem revelar uma pinga de sangue ou um bocado de carne, o Imagawa começou a ficar ligeiramente nervoso. Ao contrário do restante laboratório, nesta divisão não havia moscas porque a comida já havia sido devorada por outro ser...
Tentou não pensar muito no assunto, desviando a sua atenção para o que realmente interessava. Outra lanterna iluminou uma estante não muito afastada do Akatsuki. Evitando os ossos e alguma mobília destruída pelo caminho, apressou-se a chegar perto da estante. Ao contrário do resto, esta estava quase em perfeito estado, aparte de algum sangue salpicado e a madeira gasta das prateleiras podre, quase a desabar com o peso dos livros. As quatro lanternas separaram-se, formando um círculo no ar, ideal para iluminarem todos os cantos da estante e ainda cobrirem uma vasta área da sala para prevenir "surpresas". Haviam muitos livros e pergaminhos, mas grande parte deles já não era utilizáveis pelo seu papel podre ou por estarem tão rasgados que a consequente falta de informação tornava o seu conteúdo sem nexo. Passou as mãos por um par de pergaminhos titulados como "Relatórios" e achou prudente guardá-los dentro do seu manto, mesmo que alguns deles estivessem em mau estado. Quando o seu dedo deslizou para a prateleira mais baixa da estante, escorregou na aba de um dos livros e este caiu no chão com a capa virada para cima. Quando o Imagawa se debruçou para o agarrar, espantou-se com o título...
"Diário"
Pegou nele apressadamente e folheou-o, olhando de relance para curtas sentenças no seu interior apenas para se certificar do seu conteúdo. Confirmou o título ao ler pequenas parcelas da vida de Gaina escrita pela própria, tal como pequenos detalhes do que fazia no seu laboratório e os seus pensamentos e ideologias. Sorriu pela sua sorte, guardando também o diário dentro da capa e preparando-se para vasculhar o resto da estante em busca de mais informação. A felicidade de ter encontrado o diário impedia-o de frustrar-se com o resto dos livros e pergaminhos, que se resumiam a manuais de informação sobre diversas ciências como biologia, física, química e outras que Katsu nem conhecia. Estava tão distraído que nem sentiu a presença a uns metros atrás de si, um vulto enorme que soube ocultar-se nas sombras que não eram atingidas pela iluminação das caveiras demoníacas, com a sua respiração pesada e rugidos que não eram parecidos a nenhuma criatura conhecida. O vulto pareceu engolir algo com custo, cuspindo de seguida uma gosma esverdeada pestilenta e fedorenta, falhando, por meros centímetros, o seu alvo. Os olhos do Imagawa arregalaram-se quando a estante à sua frente explodiu num líquido verde, desfazendo-se quase instantaneamente em pó ou em pedaços de madeira que tiveram a sorte de não serem corroídos. Virou-se para trás imediatamente, trazendo para perto de si as quatro caveiras de fogo e reparou no vulto. Não conseguia distinguir nada dele aparte do seu roncar cavernoso, e algo intimidador, um líquido verde que caía no chão e o corroía, que provavelmente escorria da sua boca. O coração de Katsu começou a bater vivamente e um calafrio percorreu-lhe a espinha. Incerto sobre o que fazer, curioso para saber o que quase o matara, comandou que uma das lanternas se aproximasse para tentar iluminar a criatura. Num movimento hostil, uma boca surgiu e devorou-a antes que a luz a denunciasse. As chamas da lanterna explodiram, mas foram abafadas sem revelar qualquer luminosidade. Os dedos do Imagawa dedilhavam nervosamente...
A criatura deu um estrondoso passo em frente, comprovando que era bastante pesada pelo pequeno tremor que seguiu o seu movimento, e voltou a roncar cavernosamente, babando ácido suficiente para criar um pequeno buraco no solo. Ela ainda não estava completamente iluminada, mostrando na luz apenas o membro que dera o passo em frente. Parecia ser uma perna, uma perna extremamente musculada (algo que Katsu nunca vira na sua vida) coberta por diversos tendões, veias e pedaços de carne de pequenos animais que foram ali depositados sem qualquer senso de estética. Ocasionalmente, a carne da perna revelava pequenos olhos, penas, pêlo, espinhos, entre outros órgãos, que eram imediatamente sugados, como se o interior do membro fosse uma mistura nojenta de diversos animais que, juntos, formavam aquela perna tão musculada. Apenas a visão do membro foi suficientemente enjoativa para que as caveiras do Imagawa recuassem um pouco do seu corpo hirto, para não caírem no erro de serem também engolidas (deixando o Akatsuki em completa escuridão, algo que ele queria evitar com todas as suas forças) ou de iluminarem o resto da criatura.
Quando o vulto pareceu contorcer-se, os instintos de Katsu alertaram-no para um ataque iminente. Outra gosma verde foi cuspida, atingindo o chão onde, outrora, estava o Imagawa, que saltou para o lado para a esquivar. Quando pousou no solo, olhou para o lado e viu o enorme buraco no chão criado pelo escarro.
- Gostas de ácido?! - Gritou, tentando ignorar o nervosismo que saía com a sua voz - Então abre bem a boca!
Com breves descargas de chakra, criou um feixe de água à sua volta que depressa ganhou propriedades acídicas. Concentrando o máximo de Santon que podia para torná-lo o mais corrosivo possível, projetou o feixe para a cara da criatura (ou para a zona da sombra onde parecia ser cuspido o escarro de ácido). Esperando ouvir um urro de agonia, espantou-se quando o seu feixe desapareceu na escuridão e não causou qualquer tipo de reação. O roncar cavernoso voltou a aparecer...
- Estou fodido... - Foi a única coisa que se lembrou de dizer, afastando os braços e ativando o seu Sharingan. Não sabia porquê, mas algo lhe dizia que aquela criatura seria difícil de matar, quase impossível. Mesmo assim, lutaria pela sua sobrevivência.
Quando um rugido de fazer a pele gelar soou, Katsu deixou que quantidades abundantes de chakra emanassem pelo seu corpo. Ambos rugiram, embora o grito da criatura fosse muito superior ao do humano, atirando-se um para o outro num incontrolável desejo de sangue. A meio do ar, preparando-se mentalmente para a imagem do monstro que surgiria à sua frente, os olhos do Akatsuki arregalaram-se. Uma linha esverdeada surgiu, desenhando rapidamente um círculo perfeito.
- Chegou a hora! Não vou deixar que vejas essa abominação!
A voz na sua cabeça distraiu-o momentaneamente. Quando acordou para o que estava a acontecer à sua frente, apenas viu uma imensa boca aberta, com dentes extremamente pontiagudos a pingarem pequenos fluxos de ácido. Sobressaltou-se, mas, como estava a meio de um salto, sabia que não podia fazer nada. Para seu alívio, aproximava-se do portal criado pela Deusa, entrando nele segundos antes da boca se fechar.
Quando abriu os olhos, estava de volta ao quarto do hotel destruído pelo Tsutao. Respirava ofegantemente e o seu coração ainda bombeava freneticamente pelo susto que aquela boca lhe pregara. Achou estranho o portal não o ter levado de volta para a dimensão da Konohanasakuya-hime, como esperado, mas percebeu que, com o diário e os pergaminhos de Gaina dentro do seu manto, se calhar não havia mais nada a falar com a Deusa. Inspirou profundamente para se acalmar enquanto olhou à sua volta: Ayame, Takeshi e Sekima ainda estavam nos seus lugares antes dele ter ido para a outra dimensão, como se o tempo no mundo real tivesse parado, perscrutando-o com precaução. Piscou os olhos, como se tivesse acabado de acordar.
- Katsu? - Perguntou Takeshi, notando que a postura do seu professor não estava tão agressiva como era comum em Tsutao. As suas mãos estavam em chamas, cerradas num punho firme. - És tu, Katsu?
O Imagawa acenou com a cabeça afirmativamente, suspirando por ainda não se ter conseguido acalmar da situação anterior. Quis sentar-se, mas reparou que as cadeiras e a mesa estavam desfeitas contra a parede num amontoado de pequenos pedaços de madeira. Controlou o tremer do seu corpo e voltou a suspirar. Percebendo que o seu pai estava de volta, Sekima aproximou-se, agarrando-lhe a mão carinhosamente e chamando-o pelo seu nome. Os olhos negros de Katsu encontraram-se com os amarelados da sua filha, que transmitiam cada pingo de preocupação dela. Ela voltou a chamá-lo, com uma voz gradualmente mais fraca e preocupada, baixando a cabeça quando a mão dele lhe afagou os cabelos grisalhos. A postura apreensiva de Ayame suavizou quando viu o gesto carinhoso entre pai e filha, colocando a mão sobre o peito para se acalmar do inexplicável surto do seu companheiro de equipa. O fogo nas mãos de Takeshi apagaram-se, não as deixando queimadas ou carbonizadas como seria natural já que o fogo fazia parte dele.
Estabeleceu-se um pequeno momento de silêncio em que Katsu afagava os cabelos da sua filha, que estava quase a chorar, e Ayame e Takeshi o olhavam com atenção. Quando a Midori arranjou coragem para enfrentar a situação, deu um passo em frente.
- Vais explicar-me o que está a acontecer? - Pediu num tom calmo, como se um movimento em falso levasse o seu parceiro de equipa a ficar novamente agressivo. - Se vamos lutar juntos preferia que não houvesse segredos...
O olhar do Akatsuki desviou-se da sua filha para a sua parceira de missão. Prendeu-a por uns momentos para depois fazer o mesmo com o olhar flamejante do seu pupilo Uchiha. Levou a mão ao queixo e coçou-o, sentindo os pequenos pelos da sua barba a despertarem, e acabou de acalmar-se.
- Tenho umas coisas para contar... A todos.
Na hora que se seguiu, o Imagawa fez um relato completo de tudo o que achou necessário contar. Primeiro focou-se em explicar o seu problema com Tsutao à Ayame (que não podia ser caracterizado como múltipla personalidade) e as divergências que houveram com Takeshi. A seguir, explicou aos três o que aconteceu quando o seu alter-ego soprou no Kouseki no Keiteki (que curiosamente desapareceu após o Imagawa ter voltado do laboratório): dos Tenkei, da sua conversa com Konohanasakuya-hime, do Torneio dos Deuses e do seu novo dever, da aparição de Gaina e das suas verdadeiras intenções e da ida ao laboratório. Quando acabou, respirou profundamente, sentindo a garganta seca após ter falado tanto. Levantou-se e dirigiu-se à cozinha para beber alguma coisa, seguido por Sekima que não prestara muita atenção ao relato do seu pai, estando apenas interessada em cuidar dele após o que lhe aconteceu, deixando atrás de si uma Ayame e Takeshi atónitos. Os seus olhares arregalados retratavam perfeitamente a confusão e espanto que lhes ia na cabeça.
Quando Katsu voltou para sala já saciado, trazendo a sua pequena consigo de mãos dadas, viu que Ayame e Takeshi ainda estavam a assimilar o que tinham ouvido. O Uchiha perambulava pela sala, mexendo ocasionalmente no cabelo ruivo como gesto de nervosismo, enquanto a Midori se sentara no chão e balbuciava para si as mesmas palavras que o seu parceiro de equipa dissera, como se essa fosse a única forma de acreditar nelas. Estacaram quando o Imagawa apareceu, olhando para ele intensamente.
- Katsu, o que acabaste de dizer... - Takeshi foi o primeiro a reagir, embora a voz lhe saísse com algum custo - O que a Gaina quer da raça humana... Foi ela que fez a operação que me salvou! Eu... Ela fez-me alguma coisa?!
O tutor não desviou o seu olhar do pupilo. Nem sequer se tinha lembrado desse assunto e, agora que fora puxado, percebeu o quão sensível era. A Gaina fora capaz de introduzir um clone seu no pescoço dele quando lhe fez a operação do Fuumetsu Mangekyo Sharingan. Nem queria imaginar o que ela podia ter feito no corpo do Uchiha...