O que são sonhos? Ilusões disformes e sem sentido que nos visitam no sono, assaltam a nossa mente sem pedir licença, criando um mundo paralelo imaginário onde tudo pode acontecer.
Hoje o dia estava extremamente feio, nuvens negras como carvão pintavam o céu de melancolia, o ambiente escuro e pesado não apelava a uma passeio pelas ruas, pois gélidas gotas de água começavam a cair abundantemente, molhando a terra e libertando um cheiro característico. Odeio a chuva, não sei como surgiu este ódio, simplesmente odeio-a, o seu ar triste e gelado que parece contagiar aquilo que se atreve a enfrenta-la.
Deitado na cama olhava para o tecto creme do meu quarto, tentei me levantar mas a preguiça era mais forte, num dia como este a vontade de fazer seja o que for desaparece num fugaz sopro e é substituída por uma indolência ridícula. Fechei os olhos, substituindo o creme por escuridão, esta, num piscar de olhos, preencheu-se de branco à medida que um relâmpago preenchia a vila e a sua luz entrava pelo meu quarto iluminando-o por completo, mal a luz sucumbiu e o ambiente foi preenchido por um estrondo que fez os vidros tremer tal era a sua potencia aterradora. Sempre tivera dificuldade em adormecer, insónias eram recorrentes e aprendi a viver com elas de forma pacífica, temia sempre a chegada da noite pois já previa a longa luta pela conquista do meu sono que, mais tarde ou mais cedo, acabava por vencer.
Foi assim que num estalar de dedos toda a realidade se quebrou em mil pedaços, caindo e revelando por trás de si um mundo imprevisível e fantástico, repleto de surpresas, umas agradáveis, outras nem tanto mas todas elas mais surpreendentes que a anterior.
Olhei à minha volta, reconheci aquele espaço como sendo o café que as chamas haviam consumido vorazmente, avancei lentamente até ele, na placa onde era suposto estar o seu nome encontrava-se vazio, um espaço que a minha mente havia sido incapaz de preencher. Levei a minha mão à porta tentando abri-la mas o puxador estava a ferver e queimou-se a mão, uma fina nuvem de fumo saiu da maçaneta reagindo ao toque da minha pele. Das janelas surgiu um raio de luz vermelho seguido por um enorme estrondo, rebentando o vidro e projectando-o contra mim, agachei-me e coloquei as mãos à frente da cara, mesmo assim senti um arranhão na face. Levei a mão à cara e senti o toque quente do sangue, mas não havia tempo para contemplações, pela janela do café saia uma enorme criatura de chamas, era três vezes maior que eu, rapidamente apercebi-me do que era, o homem que me tornava a vida num pesadelo invadia agora os meus verdadeiros pesadelos, ele tentou atingir-me com a sua enorme mão incandescente, mas evitei-a ao saltar para o lado, aquela criatura virou-se para mim rosnando e libertando nuvens de fumo negro da boca. Vi que não tinha hipótese, virei-me para trás e comecei a fugir, as ruas brancas perfiladas por edifícios sem morada, disformes e incógnitos, corria até sentir as pernas a fugir do resto do corpo, a rua miraculosamente agia como uma passadeira rolante, por mais que corre-se não chegava ao seu fim, enquanto isso a criatura flamejante aproximava-se de mim.
Já sonharam e ao mesmo tempo sabem que estão encurralados num sonho? Que não conseguem fugir, mas mesmo assim continuam a explorar as maravilhas de um mundo novo?
Virei-me de novo para a criatura, não sabia como escapar desta situação, mesmo sabendo que não passava de um sonho, suor começava a escorrer-me pela testa, onde está um ruído, um abanão, algo que nos acorde? Em lado nenhum, só quando precisamos mesmo de dormir ou estamos num sonho deslumbrante e não num pesadelo de cortar a respiração.
Foi então que, à medida que me esquivava das chamas lançadas pelo homem de fogo aviste algo, parecia uma silhueta, totalmente negra, e o mais curioso é que no peito tinha um ponto de exclamação em branco, a nossa mente consegue ser bastante irónica quando quer. Não parecia estar de pé, parecia sentado a assistir ao combate, vi-o a olhar para mim, pelo menos era o que parecia, que significado teria aquilo? Diz-se que os sonhos tem significados, premonições, boa sorte, e tudo mais, mas o qual seria o significado para vulto preto com ponto de exclamação no peito? Vi o seu braço levantar, parecia em câmara lenta, aliás, tudo se movia em câmara lenta naquele momento, o que parecia ser um dedo apontou para a minha direita, o meu olhar não resistiu e virei-me de imediato, do meio do nada havia surgido uma nova rua, parecia que a minha memória começava a relembrar-se de detalhes. Voltei a olhar para a imagem negra, esta parecia acenar-me em despedida, ignorei e dirigi-me para a nova rua, era a minha única forma de escapar, mal coloquei o pé na rua vi uma sombra surgir por cima de mim, uma enorme bigorna vinha a caminho de me esmagar, parecia um episodio retirado das bandas desenhadas do jornal matinal. Fui esmagado…
Em pânico dei um salto enorme da cama, totalmente ensopado em suor e de respiração ofegante apalpei-me para confirmar que estava inteiro. Todos os sonhos são estranhos e sem sentido, este não foi excepção… abria a boca ao bocejar e foi então que senti uma forte picada na bochecha quando a pele esticou.
- Auch, que foi isto?
Levei a mão à face, senti algo semelhante a uma ferida, ardia ao tocar e tinha uma sensação quente, mal retirei a mão percebi a que se devia, sangue… olhei pela janela e vi o meu reflexo no vidro, tinha um corte na cara, exactamente no mesmo sitio onde o estilhaço de vidro me atingira no sonho, assolado por esta descoberta olhei para a outra mão, uma mancha vermelha enfeitava a sua palma, era uma queimadura, a queimadura provocada pela maçaneta. Estaria ainda a sonhar? Como era possível isto acontecer? Se calhar eu apenas sofrera aqueles danos por causa da realidade, bati com a mão na lâmpada do candeeiro e bati com a cara na mesinha de cabeceira… sim deve ter sido isso…
Diz-se que é impossível morrer ou ferir-se gravemente num sonho, o pânico a adrenalina do momento acorda-nos, quase como um mecanismo de protecção… mas será isso verdade? E que acontecerá se realmente morrer-mos no sonho?