Filler 9
Conhecidos
Haviam passado um par de dias desde a última “aventura criativa” de Naho Kita. No mesmo dia em que voltara para casa após a saída da prisão, a jovem foi recebida em casa pelo olhar horrorizado da mãe, que não pôde evitar o choque ao ver o aspecto chamuscado e o cabelo queimado da filha. O seu choque foi seguido por fúria, enquanto tentava obrigar a filha a sentar-se na cozinha para lhe cortar o cabelo queimado. A jovem, por sua vez, fez os possíveis e os impossíveis por fugir das garras da mãe. Acabou por ter de tomar refúgio no topo de um móvel alto na sala, defendendo-se da mãe com uma esfregona. Os irmãos acabaram por intervir eventualmente, quando a barulheira das duas mulheres da casa se tornou insuportável. Uma metade deles tentava acalmar a progenitora, enquanto a outra metade “picava” a matriarca ainda mais e a incentivava a ir buscar a tesoura de poda do jardim, alegando que uma tesoura normal “não teria força suficiente para cortar o cabelo da irmã”. Após a intervenção do marido, Miya acabou por concordar em deixar Naho em paz. Naho, por sua vez, não ficou totalmente convencia - enquanto descia para a segurança do solo, a mãe lançou-lhe um olhar perigoso e ameaçador que fez com que os cabelos da konohanin se arrepiassem por completo.
E assim começara o novo martírio da jovem. Castigo de duração indefinida, limitada ao seu quarto e à cozinha da casa, proibida pela mãe de sair para o exterior fosse qual fosse o motivo. Tudo isto em conjunto com a 3ª "Reunião Anual de Família" que faziam em um ano a bater à porta, mais uma vez planeada pelo seu pai. Essas reuniões eram
sempre monótonas, e não passavam de receber os avós em casa, bebericar o cházinho e comer as bolachinhas que os mesmos traziam, e falar da vida - lamentarem-se da falta de motivação de Nidorai, louvarem o espantoso crescimento de Mane até ao jounin que era hoje, perguntarem-se que raio de milagre acontecera para Naho ainda estar viva, pressionarem Moryu a seguir o exemplo de Mane (ainda que com os seus tenros 15 anos, Moryu já fosse mais motivado do que devia), e rirem-se das malandrices de Noa e Masao, os rebentos mais jovens da família. Nunca nada de importante ou diferente era discutido, para além de pôr a conversa em dia. Era sempre o mesmo de todas.as.vezes.
E ERA SEMPRE TÃO CHATO QUANTO SOAVA. E não havia maneira de nenhum dos intervenientes se escapar da reunião. Ou pelo menos era isso que Naho achava, tendo durante tantos anos procurado todo o tipo de desculpas para não comparecer.
Naquela noite em particular - o dia que precedeu a
"fantástica e nada aborrecida Reunião da família Kita" - Naho acabava de dar os últimos retoques em alguns planos de armas que tivera de refazer, após o desaparecimento súbito do caderno de capa negra, pseudo-diário, onde guardava as mesmas. Iria entregar os planos ainda hoje, apesar do seu castigo. O bom de uma família numerosa e pobre era exactamente este. Os pais e irmãos nunca tinham tempo ou memória em suficiência para verificar se Naho ainda se encontrava ou não no quarto; e como não tinham dinheiro, não lhe podiam pôr grades na janela nem trancas na porta do quarto. Munindo-se da sua mochila e dos planos recentemente acabados, Naho abriu a janela do quarto e preparava-se para saltas para o solo. Mas deteve-se quando viu uma sombra a descer a rua. Manteve a janela aberta, uma mão a descansar no vidro enquanto a outra se pousava no beiral, deixando-se ficar a observar a sombra. Não a conseguiu reconhecer até esta se encontrar de frente para a porta de sua casa, o seu rosto iluminado pela fraca luz proveniente da cozinha.
-Nidorai? - Disse Naho para si própria em surdina. O irmão partira em missão no mesmo dia em que ela havia sido detida.
"Deve ter voltado hoje." Não parecia estar em muito bom estado. A expressão pesada e ausente do seu rosto encontrava-se cheia de cortes superficiais, e tinha as mãos envoltas em ligaduras. A konohanin ponderou as suas hipóteses. Se descesse para dar as boas vindas ao irmão, provavelmente teria de ficar mais tempo junto da família a conviver. E não podia
mesmo demorar-se mais tempo: certamente Kiaro já estaria à sua espera, e se ela se atrasasse mais teria de esperar outro par de dias para ele começar a trabalhar nos planos que ela lhe queria entregar. Naho voltou a falar em surdina, mais para sua paz de espírito do que por se sentir mal pelo irmão. - Desculpa Nida, hoje não vou estar cá para te receber.
E assim, com um salto delicado, desprendeu-se da janela do seu quarto, aterrando no solo frio da rua.
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-Naho!
A rapariga já devia estar acostumada por esta altura. Sempre que a via ou a algum conhecido, Kiaro tinha a tendência de se lançar para cima de dito indivíduo, arrebatando-os num "abraço de urso" super apertado e incómodo. Desconfortável, Naho enxutou o rapaz com um "sim sim, sou eu" e umas palmadinhas no ombro esquerdo, mais a afastá-lo de si do que a demonstrar carinho. Quando finalmente a largou, o rapaz tinha um sorriso de orelha a orelha.
-Onde é que tens andado? Não te vejo desde o Natal. - Lamentou-se o jovem, olhando confuso para Naho.
-Não sejas dramático, não passou tanto tempo quanto isso. - Discordou Naho, ajeitando a sua grossa camisola com capuz para uma posição mais adequada. - Achas que podemos passar pela oficina num instante?
-Sempre directa aos negócios. - Reclamou o rapaz em tom de brincadeira, não conseguindo no entanto disfarçar a clara expressão de desapontamento no seu rosto. Abriu um pouco mais a porta de casa atrás de si, convidando Naho a entrar. - Qualquer dia vou começar a achar que só me queres pela minha grande forja.
Naho riu-se nervosamente, revirando ao de leve os olhos, mais uma vez incomodada pela atitude do rapaz. Kiaro e Naho já se conheciam há alguns anos, e na realidade o gosto que a rapariga manifestava por armas e ferramentas era, em grande parte, graças ao jovem. O primeiro contacto entre ambos aconteceu na academia ninja. Pouco se viam, mas eram farinha do mesmo saco: Naho faltava para caçar e se perder nas florestas circundantes de Konoha, enquanto Kiaro faltava para poder trabalhar em casa na oficina de forja do pai. Das poucas vezes que atendiam às aulas em conjunto, a falta de interesse mútuo nas artes ninja fez com que se aproximassem e formassem laços. A única diferença entre eles sendo que, ao contrário de Naho, Kiaro conseguira livrar-se do fardo de ter de trabalhar como shinobi. O hobby preferido do ferreiro era, para além de dar forma a armas, deixar pessoas desconfortáveis. E era extremamente bom nisso.
-Bom, cá estamos no antro do suor e das lágrimas. - Anunciou Kiaro assim que chegaram à forja, depois de passarem por partes da casa que Naho já conhecia tão bem e de cumprimentarem os pais do rapaz. - De que é que precisas?
-Queria fazer uma encomenda. - Começou Naho, retirando os planos em que estivera a trabalhar para fora da sua mochila. Ao ouvir aquela frase, que praticamente era o equivalente a "weepie dinheiro", Kiaro sentou-se numa cadeira perto de uma mesa, esfregando as mãos com contentamento. Aquela atitude quase infantil arrancou um sorriso ténue a Naho, enquanto ela estendia os papéis sobre a mesa.
-Hmm. - Kiaro debruçou-se sobre os papéis, subitamente sério e compenetrado enquanto os analisava. Era esta faceta que Naho tanto respeitava: ele podia ser extremamente inconveniente, insuportável até; mas quando se tratava do seu trabalho e da sua paixão pelo mesmo, as brincadeiras ficavam completamente de parte. - Melhoras-te muito os teus desenhos técnicos, sim senhor. Estas projecções e vistas estão óptimas.
-Quando é que achas que tens isso pronto? - Prosseguiu Naho ignorando o elogio de Kiaro, no entanto sentindo-se corar ligeriamente com o orgulho que sentia por ouvir aquilo.
-Isto está bastante bem organizado, o que por si só vai facilitar imenso o trabalho. Os materiais também não são nada de extraordinário, acho que devo ter quantidades suficientes aqui mesmo. Com o trabalho que temos tido... - O rapaz recostou-se na cadeira, inclinando-a para trás enquanto coçava a barba alourada e rasa, pensativo. Em seguida olhou directamente para Naho, quase como que a analisá-la. - Lá para o final da próxima semana, que te parece?
-Serve perfeitamente. - Anuiu Naho com um sorriso ténue. Seguiu-se um pequeno silêncio, durante o qual a jovem se demonstrou pensativa, parecendo algo ansiosa. - Olha... A tua irmã está por casa?
-No quarto, à espera do jantar. Precisas de falar com ela? - À pergunta de Kiaro, Naho apenas respondeu com um abanar de cabeça negativo. O rapaz levantou-se da sua cadeira, enrolando cuidadosamente os planos que a Kita lhe havia entregado e colocando-os numa lata alta e vazia que se encontrava no topo da mesa. Estava a acabar de ajeitar os papéis para que não caíssem quando se voltou para a rapariga. - Já agora, queres ficar para jantar? Se chega para quatro, também deve chegar para cinco.
-Ah... Não, já jantei. - Retorquiu a ruiva rapidamente, arrancando um breve olhar triste por parte de Kiaro. Naho fechou o punho da sua mão direita e usou-o para dar um toque ao de leve no ombro do amigo, desta vez reconfortando-o com um sorriso sincero. - Noutra altura.
Parecendo menos desagradado com este desfecho, Kiaro anuiu. Fez sinal com a mão para que a rapariga saísse pela porta, seguindo no encalço dela de forma a acompanhá-la até à saída. Teria sido uma saída calma e rápida, não fosse Naho ter embatido violentamente contra alguém que subitamente apareceu no corredor. Começou imediatamente a desculpar-se, o seu coração a bater a mil devido ao embaraço. A sua nervosidade aumentou quando viu contra quem tinha batido.
-Oh. Boa noite. - Cumprimentou Naho em voz baixa, subitamente assumindo uma postura passiva e acanhada.
-Não sabia que estavas por cá. - Yang, a irmã mais nova de Kiaro, cumprimentou a Kita de volta enquanto a fixava com os seus penetrantes olhos liláses. - Vais ficar para jantar?
-Jantar? Ah. Erm. - Naho parecia lutar contra as próprias palavras, procurando desenfreadamente pelas mais apropriadas a utilizar. A sua justificação saiu de forma atabalhoada. - Não posso. O meu irmão voltou hoje de uma missão. Tenho de estar por casa, porque... Tenho de estar por casa.
A loira desejou boa sorte à ruiva por entre suaves e discretas risadas, antes de lhe oferecer um aceno e percorrer o que restava do caminho até à cozinha: desta vez sem atropelar ninguém. Naho e Kiaro, por sua vez, percorreram o caminho restante até à porta em silêncio. Na altura da despedida, Kiaro não fez qualquer menção à justificação contraditória de Naho para não jantar com ele e a família. Em vez disso voltou a sacar de um dos seus famosos "abraços de urso", sufocando a rapariga.
-Pronto, pronto, estamos todos muito tristes. - Cuspiu Naho com dificuldade, aflita, enquanto dava palmadas pesadas e apressadas nas costas do rapaz na tentativa de o fazer perceber que chegara a hora de a soltar.
-Ficas bem? - Acabou Kiaro por perguntar, enquanto afrouxava o seu aperto na rapariga. Perante a pergunta Naho fez um som indescritível e exasperado, aproveitando o afrouxo do abraço por parte do jovem para o empurrar para uma distância mais confortável. Apesar disso, Kiaro pareceu divertido com a situação. - Que é?
-Tu já sabes que fico bem, passas a vida a perguntar-me isso. É irritante. - Esclareceu Naho, voltando a ajeitar a camisola. - Por este andar ficamos aqui meia hora nisso, como é teu costume. E hoje não posso.
-Desculpa, desculpa. - Desta feita o rapaz riu-se, enterrando as mãos nos bolsos das calças. - Vemo-nos para a semana que vem, suponho.
Naho concordou, e os dois despediram-se sem grandes cerimónias. A porta de entrada fechou-se atrás de Kiaro, reduzindo ainda mais a pouca luz que existia nas ruas por aqueles lados. Para Naho, o caminho de volta a casa pareceu estranhamente mais frio e solitário do que era costume.
- Cena das notificações: