O desvio

Os olhos esverdeados de Sokei fitavam os morenos de Furu intensamente. Pareciam travar uma pequena batalha mental na qual tentavam convencer o outro qual a decisão era mais acertada. À volta deles, Yuumei e o clã de Moya limitavam-se a observar numa mistura entre confusão e diversão pela cena.
Ficou claro quem havia ganho o duelo quando Furu baixou a cabeça e suspirou em desistência. Sabia que, para além de ser impossível convencer a sua protegida a mudar de ideias, as palavras da líder de Kusagakure, Kimera, eram demasiado impactantes para serem ignoradas, não o deixando ter sequer a possibilidade de considerar deixar Sokei ir para Nai Yama sozinha e ele continuar para Iwa sem preocupações.
- Ganhaste. - Falou em meio de outro suspiro, erguendo a cabeça para demonstrar os resquícios do seu orgulho como adulto e "superior" da Fukeru - Partiremos amanhã para Moyagakure e depois Nai Yama. Não vamos viajar de noite; estamos cansados e por esta altura do ano deve estar um frio insuportável nas montanhas. Vamos ter de comprar casacos em Moya para aguentar a viagem...
- Não se preocupe com isso, Furu-san! - Avisou uma das mulheres do clã, surgindo por detrás de umas rochas a limpar as mãos na bata branca que trazia à frente do seu corpo. Aproximou-se do Jounin em passos ágeis e com um largo sorriso estampado na cara - Temos roupas grossas a mais nas nossas carroças! Quer levar algumas? - Disponibilizou, aguardando até que Furu aceitasse a oferta com um sorriso desanimado para o conduzir até às ditas carroças, no qual se distraíram em conversa fiada enquanto davam uma rápida olhadela nas melhores roupas para o frio.
Sokei não conseguia tirar a satisfação da sua cara, voltando a sentar-se na pedra plana em que estivera instalada outrora (esquecendo-se completamente que continuava de malas às costas) e perdendo-se nos seus pensamentos sobre o que poderia encontrar em Nai Yama e pequenos detalhes interessantes e inexplicados sobre a lenda. Entretida a rever alguns textos que decorara inconscientemente sobre a Lenda de Nai Yama, demorou uns minutos a perceber que estava a ser observada, e de muito perto, por Yuumei. Os seus olhos avelãs brilhavam intensamente.
- És muito bonita, sabias? – Perguntou a ruiva, contemplando o semblante de Sokei de tão perto que estava a escassos centímetros das duas colarem as caras uma à outra. No entanto, a Fukeru não parecia minimamente preocupada, parecendo até aproximar ainda mais a sua cara como se tivesse à espera que algo acontecesse, nem desconfiando do que pudesse ser - Também és muito inteligente, não és? Conseguiste convencer o teu amigo a acompanhar-te por muito contra que ele estivesse!
- Não foi uma argumentação muito difícil. - Respondeu a loira, não se sentindo muito lisonjeada por elogios que eram óbvios para ela - Apenas tens de saber como usar corretamente as palavras.
- Usar corretamente as palavras... - Murmurou a ruiva para si, parando momentaneamente de dar atenção a Sokei enquanto se afastava gradualmente, desviando um olhar contemplativo para o céu. A loira não entendeu o afastamento, pois nada aconteceu entre as duas após tanta aproximação, mas decidiu não dar muita importância, ficando apenas a olhar à espera de mais alguma reação. Após alguns momentos, quando Sokei estava prestes a aborrecer-se e a preparar para entreter-se com outra coisa, é que a Rensa pareceu acordar, devolvendo a sua tão próxima atenção - Então... Podes adivinhar o meu signo sem eu o dizer?!
Uma aura silenciosa instalou-se imediatamente entre as duas. Fitaram-se durante esse silêncio: Sokei com incompreensão e Yuumei com tanta convicção que era impossível acusá-la de estar a brincar.
- Desculpa, mas não acredito que a vida de uma pessoa possa ser afetada pela época em que nasceu ou por determinada constelação no céu que a influencia. - Ante a aparente desanimação exagerada de Yuumei, a Fukeru revirou os olhos – E tu também não devias acreditar nessas coisas…
A ruiva revelou um semblante desapontado, que não demorou a iluminar-se novamente com um sorriso. Os seus olhos não paravam de brilhar, como se outra ideia tivesse surgido na sua cabeça…
- Então se não acreditas nos signos… Será que consegues adivinhar que idade tenho? Ou o meu futuro? Por favor, adivinha o meu futuro!
A loira suspirou. Mudou para falar de magia? Primeiro signos e depois magia?! Mas que tipo de crenças tinha aquela rapariga? Estava a perder a vontade de continuar uma conversa tão desinteressante. Disfarçou um bocejo.
- Desculpa, mas não me apetece mais conversar. - Avisou, falhando ao tentar fingir alguma simpatia. - Vou tentar dormir, amanhã a viagem vai ser longa...
Antes que Yuumei pudesse dizer algo, agarrou na mochila e afastou-se a passos lentos. Quando chegou a uma distância considerável da intensa iluminação da fogueira e do barulho causado pelo clã de Moya, retirou um grosso cobertor e estendeu-o sobre o solo de pedra, colocando de seguida uma almofada por cima. Atirou-se para a cama improvisada e virou-se de barriga para cima, contemplando as poucas estrelas visíveis na noite cerrada.
Atrás, ficou uma Yuumei algo cabisbaixa por ter deixado de conversar com a sua nova conhecida. Essa tristeza não demorou a desaparecer para dar lugar à habitual alegria e espontaneidade. Se não podia falar mais com a loira, então continuaria a divertir-se com os membros do clã de Moya! E apressou-se a juntar a alguns desses membros à volta da fogueira, que davam a entender que iriam contar mais histórias para além da Lenda de Nai Yama. Para ela a noite ainda mal havia começado!
Longe de tanta confusão, Sokei bocejou.
Há uns minutos atrás não tinha sono, mas bastou deitar-se em algo confortável que o cansaço atingiu-a imediatamente. As pálpebras pesavam-lhe tanto que deixavam claro que não iriam demorar a fechar-se num mundo de sonhos. Antes de adormecer, ergueu o tronco para averiguar o que o seu protetor estava a fazer. Perto das cabanas dos oriundos de Moya, Furu e mais umas quantas mulheres conversavam intimamente, com muitas risadas forçadas à mistura. Davam a entender que a disponibilidade das mulheres do clã não se resumia unicamente a entregar roupas quentes a estrangeiros. A Fukeru riu-se. Seria o Furu popular entre as mulheres? Voltou a deitar-se a pensar nisso. Não demorou muito a adormecer…

O som rouco do grasnar de alguns pássaros de passagem foi o despertador daquela manhã. Os olhos de Sokei piscaram um par de vezes, ainda atordoados, e o corpo dela ainda se encontrava demasiado mole. Espreguiçou-se, soltando alguns grunhidos, até se sentir satisfeita. Olhou para o céu e notou que poucas nuvens brancas o habitavam e que o Sol ainda se encontrava com as suas cores madrugadoras. Ergueu o tronco e bocejou. Sentia as costas doridas; por muito confortáveis que o seu cobertor e almofada pudessem ser, não conseguiam reduzir a dureza de dormir num chão totalmente de pedra. Levantou-se e guardou todos os seus pertences na mochila. Sorriu ao lembrar-se que tinha ficado decidido que iria explorar Nai Yama. Uma súbita descarga de energia e ansiedade percorreu-lhe o corpo. Mais motivada, ergueu a cabeça e procurou o seu protetor, o guia que a levaria à tão desejada Montanha Morta.
Olhou para o clarão em que estava com o clã Moya na noite anterior. Nele restava apenas o círculo, no qual outrora esteve a fogueira, coberto de brasas e restos de achas de madeira que tiveram a felicidade de não serem consumidas. À volta desse círculo ainda se encontravam os bancos de pedra criados pelo Doton do clã, alguns com restos de comida ou roupas e outros com utensílios inúteis que foram ali abandonados. Nenhum membro ou carroça do clã de Moya se via àquela hora da manhã. Tinham partido assim tão cedo?
- Aquele clã é bom a festejar, mas não gosta de arrumar as coisas. Olha que lixeira que fizeram! – Disse Furu com uma voz alegre, aparecendo ao lado da sua protegida com alguns passos. A Fukeru conteve o seu sobressalto e não exteriorizou a sua vontade de perguntar-lhe de onde é que ele tinha aparecido – Nem acredito que me convenceste a ir contigo nesta loucura…
Sokei olhou de esguelha para o seu protetor. Furu Itsuwarimono, um Jounin de Iwagakure. Um jovem adulto, com vinte e oito anos, de cabelo curto castanho-claro e olhos de semelhante tom. Foi o ninja incumbido de proteger Sokei na sua transferência entre Kusagakure e Iwagakure. Desde então, a Fukeru descobriu nele diversas coisas interessantes. Uma personalidade gentil e algo fácil de se manipular (comprovou-se por o ter conseguido convencer a guiá-la até Nai Yama), dotado de uma capacidade invulgar de narração, daí a sua faceta de trovador. Além disso, também aparenta ser popular por entre o sexo feminino…
- Como foi ontem à noite? Fizeste sexo com aquelas mulheres todas? – Perguntou Sokei, com um tom bastante curioso.
O trovador atrapalhou-se com a súbita pergunta, engasgando-se e soltando diversas palavras sem nexo para o ar. Recompôs-se e tossicou para a sua mão, sem saber como agir perante aquela situação. Olhou para a sua protegida, que o fitava com uma curiosidade imensa, e ficou ainda mais constrangido.
- P-por que a pergunta?
- Aquelas mulheres riam-se de tudo o que dizias. Duvido que estivesses a contar piadas sobre casacos… - Explicou-se a loira, aproximando-se de Furo com cada vez mais curiosidade – Então, ontem à noite tiveste no que as pessoas chamam de “harém”? Nunca vi um…
O Jounin ficou vermelho como um pimento, desviando o olhar para não ter de encarar quem o punha naquele estado. Gargalhou nervosamente, à falta de uma ação melhor, e puxou a mochila às suas costas para a frente do seu peito. Abriu-a e tirou de lá dois mantos grossos beges, ambos com o símbolo do clã de Moya às costas. Entregou um deles a Sokei, que não estava satisfeita por não ter a sua curiosidade saciada, e afastou-se com o outro ainda nas mãos. A loira ficou a observá-lo com o manto nas mãos, estranhando o facto dele se aproximar de alguém deitado a uns metros de distância, quando todo o clã de Moya já havia partido. Só ao notar o cabelo ruivo dessa pessoa é que Sokei se lembrou…
- Yuumei, acorda. – Pediu Furu gentilmente, agachando-se e abanando o corpo dela. Ouviram-se uns gemidos baixos seguidos por um intenso bocejar. Um novo bando de pássaros esvoaçou pelo local com o seu grasnar rouco – Já está na hora de irmos.
O Jounin afastou-se quando a adolescente ruiva se esticou para espreguiçar. O seu tronco ergueu-se e dois olhos avelãs perscrutaram o cenário à sua volta, ainda meio ensonados. Acabaram por cravar-se no adulto à sua frente.
- Bom-dia. – Cumprimentou com uma voz mais mole que o normal, voltando a espreguiçar-se e a bocejar enquanto Furu retribuía o cumprimento. Reparou que Sokei a fitava e sorriu-lhe – Bom-dia, Sokei! – Não esperou para ouvir a resposta da loira, levantando-se num salto com uma energia impressionante para quem acabara de acordar. Recebeu o manto bege das mãos de Furu com um sorriso e um agradecimento e apressou-se a guardar os seus pertences na sua própria mochila.
Satisfeito pela ruiva ter um acordar tão enérgico, Furu reparou no semblante algo incomodado da sua protegida e aproximou-se da mesma.
- Ontem à noite, já estavas a dormir, a Yuumei insistiu bastante em viajar connosco. Não consegui convencê-la do contrário e o clã de Moya também não tinha qualquer conexão com ela, portanto acabei por ceder. – Justificou-se com uma risada nervosa. Voltou a mexer na sua mochila e retirou três maçãs, entregando uma delas à Fukeru – Come, vamos precisar de energias para chegar a Moyagakure.
A loira aceitou a fruta e a justificação do seu professor, olhando com certa relutância para a sua nova companheira de viagem, que se encontrava completamente atrapalhada a enfiar todos os seus pertences para dentro da mochila sem qualquer tipo de organização. Deu uma trinca na maçã, nem notando no seu sabor. Não desgostava de Yuumei e a sua companhia na viagem a Nai Yama não lhe proporcionava qualquer incómodo. Apenas tinha medo que a sua personalidade desleixada pudesse atrapalhar…
Observou Furu a entregar uma das maçãs a Yuumei, trocando algumas palavras amistosas com ela.
- Bem… - Anunciou o trovador após a curta conversa, dando uns passos para a frente e virando-se para as duas adolescentes com um sorriso – Vamos para a Nai Yama!